Ovelha desgarrada
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Ovelha desgarrada

Vestir a alma do outro é suprema manifestação divina; manifestação de amor que não reclama reciprocidade. E o bispo fez dos versos que o ofendiam a sua prece mais piedosa.

  • Publishedsetembro 10, 2024

Dom Frei Francisco de Lima saía da capela do Arco do Bom Jesus, no portão norte da vila do Recife, quando uma mulher correu a refugiar-se em sua batina. Era uma jovem escravizada, logo apanhada por seu perseguidor e arrastada pela rua do Bom Jesus. Implorava perdão, chorava em desespero, não tivera culpa sabe Deus do quê, malvestida de ralos panos como qualquer escravizado desta terra; os olhos da gente se fartam de ver peitos rijos sob panos escassos, olhos que o piedoso dom Francisco tratou de desviar para calar pensamentos corruptos — Deus me perdoe — enquanto recompunha a batina.

Nomeado bispo de Pernambuco, Dom Francisco chegara a Olinda em fevereiro daquele 1696, contavam-se somente nove meses. Visitava a vila do Recife a fim de amealhar recursos dos comerciantes locais para sua nova empreitada: viajar ao sertão a assistir indígenas contra os desmandos de um certo Domingos Jorge Velho. Causara espanto aos pernambucanos o recém-chegado bispo com sua energia de noviço em seus 67 anos. Mais do que o vigor de seu corpo sexagenário, aquelas incursões aos sertões demandavam não poucos numerários, e os comerciantes do Recife, sempre à sombra da suspeita de judaísmo, não desperdiçariam de confirmar suas devoções à Santa Igreja, ainda que por lamentosas doações extras.

O bispo passou olhos à rua, onde duas quituteiras sentadas ao rés do chão vendiam seus manjares e distribuíam chistes e risadas. Quando ele se aproximava da liteira que o esperava com seus dois negros, um comerciante do lugar o interpelou respeitosamente. Pedia que Sua Excelência Reverendíssima obsequiasse a extrema unção a um membro de prestigiosa família da cidade da Bahia e que terminava seus dias no Recife. Ao ouvir de quem se tratava, o bispo foi enfático: Nunca!

— Que se faça acudir por outro qualquer pároco desta vila.  

O moribundo de que falavam era o advogado e poeta baiano Gregório de Matos, que cumprira breve exílio em Angola e fora autorizado a retornar ao Brasil. Tinha família e amigos influentes. Voltava, mas não à sua Bahia, de onde fora expulso após granjear desafetos por seus versos satíricos. Acolheu-o a vila do Recife, em cujo porto sua fama de Boca do Inferno desembarcara muito antes dele.

Dom Francisco o julgava um herege imperdoável. Que dirija ele suas imoralidades e insultos às autoridades ou até mesmo ao clero, mas não ao próprio Altíssimo. Condenava em Gregório, mais que tudo, seu atrevido soneto “A Jesus Cristo Nosso Senhor”:

— Debocha da própria misericórdia divina! Devia cair-lhe a mão pesada do Santo Ofício.

Mas o homem insistia ao bispo: Gregório é amigo dos principais desta urbe, e tem as graças do próprio governador Caetano de Melo e Castro. O que dirá Vossa Excelência Reverendíssima a Jesus Cristo nosso Senhor por negar sua última clemência?

Este argumento dobrou inflexível bispo. Diante de um expirante Gregório de Matos em seu penúltimo leito, Dom Francisco dirigiu-lhe o latinório do sacramento derradeiro. E acrescentou:

— Que te arrependas de teu soneto herético dirigido a Jesus Cristo Nosso Senhor.

O poeta abriu os olhos; após quase um minuto de silêncio, um derradeiro sopro de vida sorriu-lhe no rosto:

— O perdão é a glória de Deus, Vossa Reverendíssima. — E cerrou os olhos pela última vez.

O bispo permaneceu ainda meia hora conversando com o silêncio do poeta. O que é perdoar? Abdicar da reparação ou da vingança, ainda que guardando mágoas? Afogar o ressentimento em concessão de pretensa superioridade moral? Foi então que, como por iluminação divina, Dom Francisco alcançou uma definitiva compreensão:

Lembrou-se ele de seu tempo de lente em Évora, quando um discurso seu ofendeu o deão Anselmo; seu esforço em reparar a ofensa involuntária fora em vão. Mais do que a censura, pesou-lhe a zanga do amigo que estimava. Uma febre levou dom Anselmo apenas uma semana depois, sem que Dom Francisco lhe alcançasse o perdão.

Pecado e pecador não são o mesmo, sussurrou o bispo. O ato ofensivo é uma semente que só floresce em ofensa se encontra solo fecundo no ofendido. Entendei o animus do ofensor, sopesai suas razões e valores e, mesmo não comungando deles, podereis alcançar a luz em vestir a alma do faltoso; os gregos chamam a isso empatheia. Vestir a alma do outro é manifestação de amor que não reclama reciprocidade. Vestir a alma do outro é a suprema manifestação divina.

O bispo mirou o poeta, de cujo silêncio quase podia ouvir os versos atrevidos:

“Que a mesma culpa que vos há ofendido
Vos tem para o perdão lisonjeado”.

Dom Francisco pôs a mão sobre a fronte do agora inanimado Gregório de Matos e, em oração, fez do soneto blasfemo a sua prece mais piedosa:

Tendes aí, Senhor, vossa ovelha desgarrada.
Acolhei-a; e não queirais, Pastor Divino,
Perder na vossa ovelha a vossa glória.

Written By
Gilberto Vitor

Escritor, pesquisador independente - Literatura, Filosofia, Linguística.

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