Doutrina liberal e violência urbana: a lição negligenciada de John Locke
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Doutrina liberal e violência urbana: a lição negligenciada de John Locke

Todos valorizamos e defendemos nossa liberdade – o direito de ir e vir, o direito de escolhas. E sabemos também que o direito à liberdade, se exercido sem limites, afeta

  • Publishedjunho 7, 2020

Todos valorizamos e defendemos nossa liberdade – o direito de ir e vir, o direito de escolhas. E sabemos também que o direito à liberdade, se exercido sem limites, afeta a harmonia do convívio social: Se eu invado o direito do outro, ele será naturalmente impelido a invadir o meu. Nessa fronteira nascem os conflitos; de forma que, em ambiente civilizado, não há liberdade absoluta.

John Locke, para muitos o pai da doutrina liberal, alerta-nos para os limites à liberdade no campo econômico – o liberalismo sem limites leva a conflito e violência sociais. Precisamos ouvir Locke: O que devemos considerar, na Economia, em termos de violência urbana?

Estátua da Liberdade (Pixabay).

Helena, 41 anos, fazia sua caminhada matinal no calçadão, exercício de todo amanhecer na sua rotina de cuidados com a saúde, quando foi surpreendida por um carro desgovernado. O motorista, identificado por Pedro, 32 anos, passara a noite exercendo sua liberdade de beber com amigos e, depois, seu direito de dirigir seu próprio carro. Helena ficou quatro dias em coma, mas sobreviveu. Hoje, desloca-se sobre cadeira de rodas. A liberdade de Pedro chocou-se contra a liberdade de Helena.

Quem mora em condomínio sabe o que são regras – você tem o direito e a liberdade para furar a parede de seu apartamento, pois é seu patrimônio. No entanto, você renuncia a uma parte dessa liberdade, aceitando limites aos horários em que pode fazer isso, em troca de seu vizinho também respeitar os horários em que você tem o sagrado direito ao silêncio. Essa lei de convivência foi enunciada pelo filósofo Thomas Hobbes (1588-1679) ainda no século XVII: que todos devem concordar em abdicar de parte de sua liberdade para harmonização do interesse comum, única maneira de evitar conflitos que levam à violência. Hobbes classifica a liberdade como direito de natureza (jus naturale) e enuncia a lei de natureza (lex naturalis) que estabelece que “todo homem deve esforçar-se pela paz, na medida em que tenha esperança de consegui-la, e caso não a consiga pode procurar e usar todas as ajudas e vantagens da guerra” (HOBBES, 1983, p. 78).

O conceito de contratualismo social de Hobbes diz, simplificadamente falando, que todos têm liberdade de tratar sua vida como melhor lhe convenha para o alcance de sua sobrevivência e bem estar. Mas, na medida em que a liberdade de um avança sobre a liberdade do outro, então as partes devem, em busca da paz, pactuar que os antagonistas renunciem a parte de seus direitos. É aqui que entra o Estado.

Como se vê no caso de Pedro e Helena, a liberdade por si só não é promotora de justiça, mas, ao contrário, se exercida sem limites, é fator de conflitos. Disso vem o enunciado mais famoso de Hobbes – “o homem é o lobo do homem”. Entende-se por liberdade a ausência de impedimentos externos. É paradoxal que, para ser legítima, ela deva respeitar aqueles limites.

John Locke, o liberalismo e a defesa do combate às desigualdades.

Outro contratualista importante que merece ser citado é John Locke, considerado o pai do Liberalismo, doutrina que se baseia na defesa da liberdade individual nos campos econômico e político contra as ingerências e ações coercitivas do poder estatal. Tratando da liberdade como valor sagrado do indivíduo, Locke faz um importante trabalho na conceituação e legitimação da propriedade privada e da liberdade em conquistá-la e expandi-la. Os liberais mais ortodoxos usam a obra de Locke para justificar a liberdade e o direito absoluto sobre a propriedade, mas ignoram, por conveniente, a parte em que o filósofo fala em igualdade e limitações à acumulação.

Em conferência no Instituto de Estudos Avançados da USP,  Kuntz (1997) cita, especificamente, o segundo tratado de Locke para lançar luzes à sua abordagem sobre a igualdade e os limites da liberdade. E cita ainda a obra Ensaios sobre a Lei de Natureza, especificamente o ensaio número oito (“O interesse próprio de cada homem é a base da lei de natureza? Não”) para mostrar que Locke alertou que a disputa por propriedade, sem regra, “deixará alguns, talvez a maioria, desprovidos de quaisquer benefícios”, o que leva ao estado de guerra e, consequentemente, “não se poderá falar em direito de propriedade, nem, portanto, em justiça(Kuntz, 2007, P. 15).

Esse estado de guerra que emerge do extremo da desigualdade social salta aos olhos quando comparamos as diferenças dos índices de violência entre os países que apresentam diferentes níveis de desigualdade, como veremos em seguida.

Liberdade e Igualdade: sem a segunda, a primeira é exercício de tirania.

A igualdade foi uma das três bandeiras da Revolução Francesa (Liberdade, igualdade e fraternidade, presentes textualmente em sua Constituição atual). Em nossa Carta Magna, a promoção da igualdade está positivada em vários pontos e trata de igualdade material, e não apenas formal, como lembrou o ex-Ministro do STF Ayres Brito, “Com o que se homenageia a insuperável máxima aristotélica de que a verdadeira igualdade consiste em tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, máxima que Rui Barbosa interpretou como o ideal de tratar igualmente os iguais, porém na medida em que se igualem; e tratar desigualmente os desiguais, também na medida em que se desigualem(STF, 2020). Nisso se fundamentam as políticas de ações afirmativas.

O crescimento dos esforços em reduzir as desigualdades a partir de meados do século XX não se deve a consciências humanistas ou singelos sensos de justiça, senão à constatação prática do que afirmou Hobbes, e asseverado depois por Locke e pelo francês Jean-Jacques Rousseau em seu Do Contrato Social: A sociedade é um grande pacto em que todos renunciam a uma fração de seus direitos naturais em troca de convivência pacífica e harmoniosa, e de vida digna. Se esse pacto é sentido como injusto, os injustiçados se levantarão. Como resta claro na obra de Locke, é necessário “que a desigual distribuição da riqueza, representada pela terra e pelo estoque de capital, não prive alguns homens das condições mínimas necessárias a uma vida decente” (KUNTZ, 1997).  Os números e fatos mostram que há uma correlação entre desigualdade social e violência.

O Banco Mundial publica uma entrevista com o economista Hernan Winkler em seu portal internet em que trata do tema, com o título “It has been proven, less inequality means less crime, ou “está provado, menos desigualdades significa menos crimes”, em tradução livre (WORLD BANK, 2017). Por sua vez, a Organização Mundial de Saúde disponibiliza relatório conjunto com a UCL – University College London – que evidencia a relação entre desigualdades e violência.  Intitulado Inequality and Violence, o documento usa dados estatísticos de 2007 e 2008 (WHO, 2009). O slide 16, reproduzido na figura 1 abaixo, mostra o número de homicídios por milhão de habitantes, e nele fica evidenciado que há uma relação direta com os índices de desigualdades.  Mas há algo adicional que a muitos pode surpreender: a posição dos Estados Unidos em relação às taxas de desigualdade e homicídios. Entre os países mais ricos, é o que apresenta, de longe, os maiores índices de desigualdade social e violência.

Figura 1 (WHO, 2009)

O país da liberdade e das desigualdades.

Aquela posição incômoda para os estadunidenses é confirmada por levantamento feito pelo Instituto Avante Brasil, conforme artigo na página JUSBRASIL publicado pelo jurista brasileiro Luiz Flávio Gomes. De acordo com o levantamento (Gomes, 2013), os Estados Unidos aparecem como o quinto país mais violento entre os países com maior IDH – índice de desenvolvimento humano. Em 2010, aquele país apresentava 4,8 mortes por homicídios para cada 100 mil habitantes, quase cinco vezes o segundo colocado, Austrália.  “Descobriu-se que Nova Orleans, a cidade que mais mata por arma de fogo no país, tem quase a mesma taxa de mortes que Honduras, o país que mais mata no mundo. Detroit foi comparada a El Salvador, Baltimore foi comparada a Guatemala, Miami foi comparada a Colômbia e Washington comparada a São Paulo”, afirma Gomes (2013).

De fato, o país que ostenta orgulhoso a Estátua da Liberdade como símbolo precioso de seu valor mais sagrado é campeão de desigualdades entre os países mais ricos, apresentando índices comparáveis a países subdesenvolvidos.  Matéria publicada pela britânica BBC em outubro de 2018 alarmava que “Aumento do número de sem-teto nos EUA é ‘bomba-relógio’”. De acordo com a matéria, Los Angeles, cuja situação é reportada como crescente, “tem mais de 50 mil pessoas desabrigadas, logo atrás de Nova York, com cerca de 75 mil pessoas” (BBC, 2018). Para comparar com São Paulo, cidade mais rica do Brasil, um dos países mais desiguais da América Latina, podemos utilizar informação publicada pelo jornal Folha de São Paulo no mesmo ano 2018: “Em dois anos, SP vê salto de 66% de pessoas abordadas vivendo nas ruas” (Folha de São Paulo, 2018). Das duas matérias podemos fazer cálculos reveladores: enquanto São Paulo apresentava 847 desabrigados por cem mil habitantes, Nova Iorque o superava com 893 sem tetos, enquanto Los Angelis apresentava seus 1.253.

Liberdade sem igualdade não promove justiça nem paz social.

Ditadores violentos, indiferentemente se de esquerda ou de direita, fizeram e fazem uso do apelo à liberdade e à democracia, enquanto prendem ou matam opositores, censuram artistas e sufocam os movimentos culturais. Enquanto qualquer ditadura pode ostentar palavras abstratas como liberdade, pátria e democracia em seus slogans, poucos governos fazem do combate às desigualdades a sua bandeira, embora o conceito e o compromisso de promover a igualdade esteja presente na maioria das constituições nacionais de países civilizados.

John Locke alerta que liberdade não pode prescindir do limite às desigualdades produzidas pela livre iniciativa e propriedade privada. Os doutrinadores liberais não deveriam pregar apenas o que lhes é conveniente, liberdade e livre iniciativa sem um estado promotor de equilíbrio porque, como alertam Locke, Hobbes e Rousseau, isso acarreta tal distorção que levará os tácitos signatários mais desfavorecidos do pacto social ao estado permanente de revolta e guerra.

As forças de repressão do estado, desde sempre empregadas para prevenir e sufocar a revolta dos desfavorecidos, não poderão conter essa força sem o emprego de violência cada vez mais intensa, alimentando ainda mais violência, levando a mais desigualdades e menos paz social.

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Referências bibliográficas:

BBC – British Broadcasting Corporation – News Brasil. Aumento do número de sem-teto nos EUA é ‘bomba-relógio’. Disponível em < https://www.bbc.com/portuguese/geral-45809130>. Publicado em 13 outubro. 2018. Acesso em 04 junho. 2020.

Folha de São Paulo. Em dois anos, SP vê salto de 66% de pessoas abordadas vivendo nas ruas. Disponível em < https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/06/em-dois-anos-sp-ve-salto-de-66-de-pessoas-abordadas-nas-ruas.shtml>. Publicado em 22 junho 2018. Acesso em 06 junho. 2020.

Gomes, Luiz Flávio. EUA é o quinto país mais violento dentre os países mais desenvolvidos. Portal Jusbrasil. Disponível em < https://professorlfg.jusbrasil.com.br/artigos/121931738/eua-e-o-quinto-pais-mais-violento-dentre-os-paises-mais-desenvolvidos>. Publicado em 2013. Acesso em 04 junho.2020.

Hobbes, Thomas. Leviatã ou Matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Coleção Os Pensadores.  São Paulo: Abril Cultural, 1983

Kuntz, Rolf. Locke, Liberdade, Igualdade e Propriedade. Texto da conferência realizada no IEA-USP – Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo em 11 de abril de 1997. Disponível em < <"http://www.iea.usp.br/publicacoes/textos/kuntzlocke.pdf">http://www.iea.usp.br/publicacoes/textos/kuntzlocke.pdf >. Acesso em 03 junho. 2020.

STF – Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade ADI 3.330, rel. Ayres Britto, , j. 3-5-2012, P, DJE de 22-3-2013, disponível em <<"http://www.stf.jus.br/portal/constituicao/artigoBd.asp?item=31">http://www.stf.jus.br/portal/constituicao/artigoBd.asp?item=31>. Acesso em 05 junho. 2020.

The World Bank – It has been proven, less inequality means less crime. Disponível em < <"https://www.worldbank.org/en/news/feature/2014/09/03/latinoamerica-menos-desigualdad-se-reduce-el-crimen">https://www.worldbank.org/en/news/feature/2014/09/03/latinoamerica-menos-desigualdad-se-reduce-el-crimen >. Publicado em 5 setembro 2014. Acesso em 05 junho. 2020.

WHO – World Health Organization. Inequality and Violence. Disponível em < https://www.who.int/violence_injury_prevention/violence/4th_milestones_meeting/marmot.pdf >. Publicado em setembro 2009. Acesso em 05 junho. 2020.

Obras apenas citadas:

Do Contrato Social, de Jean-Jacques Rousseau (1762)

Written By
Gilberto Vitor

Escritor, pesquisador independente - Literatura, Filosofia, Linguística.

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