As noivas de Miro
Contos

As noivas de Miro

Miro amava Ritinha, a quem prometeu noivado. Mas o coronel lhe fez chegar proposta de casamento com outra moça. O coronel dá tudo: casa, móveis... Miro precisa se decidir.

  • Publishedmaio 2, 2022

Miro limpava as baias dos cavalos no haras do Maranguape quando ouviu um cumprimento cordial atrás de si. Aprumou-se sobre a pá e se virou. Sorria para ele um homem magro, meia-idade, elegante, paletó e camisa brancos ornados com gravata verde, chapéu de grã-fino. Não o conhecia, mas forçou um sorriso de quem era familiar:

– Tudo bem. E o senhor, como tem passado?

Nunca, em seus 22 anos, um senhor tão distinto lhe dirigira palavras gentis. Depois que o cavalo Mossoró venceu o Grande Prêmio do Brasil no Rio de Janeiro naquele ano de 1933, Miro acostumou-se a ver gente grã-fina de todo o Brasil que vinha à coudelaria do Coronel para conhecer seus cavalos e, particularmente, o tordilho campeão. Mas nenhum daqueles lordes jamais dirigira o olhar ao rapaz invisível cujo nobre ofício era limpar a merda dos cavalos dos zelos do Coronel.

– Não sei se o senhor lembra de mim, seu Miro. Meu nome é Diógenes. Frequento a casa-grande e sou chefe do escritório de registro de empregados.

Com um lenço no nariz, o homem levou Miro a um canto longe das baias, falando manso e pausado:

– O senhor é solteiro, que eu saiba, não é? Ou já arranjou uma mulher que lhe arreie as cangalhas?

Miro gaguejou um pouco, mas preferiu omitir sua promessa de noivado a Ritinha:

– Solteiro ainda, sim senhor.

– Tem uma moça bonita, seu Miro, de boa família, moça direita, religiosa, muito devota, muito bonita, não sei se já lhe disse, que aceitaria se casar com o senhor. O Coronel vai…

– Oxe!, que conversa é essa? – espantou-se Miro, lembrando-se de tirar o chapéu tosco da cabeça.

– O coronel vai dar todas as condições para os noivos estabelecerem seu lar, com casa, móveis, todo o conforto para o senhor começar bem a construir sua família. Se o senhor aceitar, é claro, não é, seu Miro?

Miro coçou a cabeça: com certeza, era arranjo de casamento para moça bulida:

– Quem é a moça?

– É filha de família distinta. O pai é contramestre da tecelagem, acho que o senhor o conhece porque é uma pessoa muito querida e respeitada.

Miro não conhecia nenhum contramestre.

Seu… desculpe a impertinência… quem foi que buliu com a…

– O senhor vai entrar numa família distinta.

Miro olhou ao redor, não havia onde sentar. Aquilo podia lhe render algum prestígio entre pessoas lordes, quem sabe até crescer na vida… Casa, móveis, favores da casa-grande. Mas podia virar alvo de chacota. Ou de inveja.

– Vou pensar, seu Diogo. Amanhã eu lhe respondo.

– Diogo, não: meu nome é Diógenes. Acho melhor se apressar, ouviu?, seu Miro. Tem muita gente no seu lugar que aceitaria assim, na bucha.  O senhor foi recomendado como sendo uma pessoa muito digna e apropriada à singularidade da moça, mas tenho outros interessados.

– “Singularidade”…

– Uma pessoa de boa família, de prestígio.

– Eu prometo que lhe respondo amanhã, seu

– Amanhã pela manhã, me procure no escritório de registro de pessoal às 9 horas em ponto.

À noite, foi jantar com o irmão; pedir-lhe conselho:

– O homem disse que o pai dela é distinto, é contramestre…

– Contramestre? Rá! Pé-rapado como todo mundo. Distinto aqui só o povo do Coronel e os alemães que eles trazem para pisar nos operários.

A cunhada botou na mesa a batata-doce com tripas de porco, e ele se serviu sem timidez, falando de boca cheia:

– Do jeito que ele falou, pensei que era algum gravata-lavada.

– Case. Se não der certo, depois de um tempo você deixa ela. Por que não arriscar?

– E Ritinha? Já prometi noivado. O pai dela vai tomar isso como desfeita.

– E ele vai fazer o quê, se é do gosto do Coronel?

– Eu penso é nas pilhérias que vou ouvir, casado com moça bulida. E se ela já tiver pegado bucho?

– Besteira. Sendo o Coronel quem abençoa o casamento, todo mundo respeita. Mais do que à bênção do padre.

– E quem terá bulido com a moça?

– Para que você quer saber? A história é sempre igual: algum poderoso bateu o olho, gostou, mandou buscar, buliu. Depois, se for de boa família, não desampara. Bota casa com tudo dentro e lhe arranja um casamento. Se chegar a ter filho, aí é que está mais garantida. Se uma filha minha tivesse a sorte de…

– Não fale merda, Tonho! – gritou a mulher, com raiva.

Miro não dormiu direito: matutou a noite toda. Podia ser sorte, podia ser azar.

No outro dia, manhã se insinuando na madrugada, tomou o rumo da coudelaria, subindo a trilha pelo Catolé para adiantar seu serviço.

Pouco antes das 9 horas, Miro chegou ao escritório. À senhora que o atendeu, disse que estava procurando seu… é o seu… Reconheceu o homem sentado atrás de uns livros de registros volumosos, e o apontou. A mulher confirmou:

 Seu Diógenes. Espere um pouquinho que vou avisar. Qual é o seu nome?

– Valdomiro.

A mulher já se afastava quando ele corrigiu:

– Miro, é Miro. Ele me chama de Miro.

A mulher chega à mesa do seu Diógenes e lhe fala algo. Ele responde com duas ou três palavras sem tirar os olhos do livro. Ela volta e manda Miro se sentar. Na parede grossa entre duas janelas grandes, um relógio de mostrador branco com algarismos romanos indica 9 horas. Os olhos de Miro fixam-se no relógio, seu pêndulo de madeira com disco metálico indo e voltando, e Miro ainda não tem certeza se dirá sim, mas o vai-e-vem do pêndulo lhe aconselha a dizer não. Algarismos romanos são misteriosos. Miro acha fácil até o três, depois confunde o quatro e o nove, mas no relógio fica fácil porque IV tem que ser quatro e IX é nove com certeza. Na coudelaria tem uma placa metálica com ano que começa com eme de Miro, uma das poucas letras que ele conhece.

Seu Diógenes demora nos livros, e os livros grossos parecem respeitáveis e ameaçadores. O homem tem que obedecer aos livros onde ele anota e lê com muita devoção. Miro olha nos outros funcionários em suas mesas, todos de olhos submissos às suas páginas, quase não piscam. Miro queria ser mais desasnado para poder trabalhar nos escritórios, mas agora ganhou medo daqueles livros tirânicos.

O pêndulo vai e volta como a barcaça na praça da República. Ele gosta mais da barcaça do que da roda-gigante. Na barcaça, Ritinha subindo e descendo à sua frente, sorriso bonito, ele tentando adivinhar seus joelhos sob a saia que os protege de olhos indiscretos. Engraçado, o III e o IX no relógio ficam deitados, e o VI é de cabeça para baixo. A pêndulo já foi e voltou muitas vezes, e o ponteiro grande já está no VI de ponta-cabeça. A barcaça vai e volta com o sorriso de Ritinha, ela segurando a saia no vai-e-vem do pêndulo, o pêndulo dizendo não.

Seu Diógenes deve estar mesmo muito ocupado. Ou será que ele já encontrou alguém que disse sim? O coronel dá casa, dá tudo. O pêndulo balança a cabeça, negando. O coronel não desampara. O pêndulo vai e vem dizendo não. Lá vem seu Diógenes. Miro se levanta, chapéu na mão:

– Aceito.

O casamento teve lugar na igreja de São José, quinze dias depois do “aceito”. A noiva, aliviada, recebia os cumprimentos. Ritinha, inconsolável, chorava a perda do seu amor.

O pai de Ritinha tomou aquilo como desfeita, ainda mais com o choro incontido da filha pelos cantos da casa. Botou na cintura sua melhor faca, e saiu para a rua.

O sepultamento teve lugar no Campo Santo de São José, três dias depois do casamento. A viúva chorou a morte prematura do pai tardio do filho que trazia no ventre. Ritinha, que do reino das paixões já conhecera sua delícia e seu amargor, experimentou ali o terceiro de seus sabores: o gozo agridoce da vingança.

Written By
Gilberto Vitor

Escritor, pesquisador independente - Literatura, Filosofia, Linguística.

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