Para quem você mente mais? As mentiras que nos sustentam.
Tenho Lido

Para quem você mente mais? As mentiras que nos sustentam.

Sobre mentir e sobre mentiras: para quem mentimos mais?

  • Publishedfevereiro 22, 2022


Quantas mentiras você inventa por dia? Sobre quantas mentiras você sustenta sua existência?

No livro As Mentiras que os Homens Contam, o extraordinário Luís Fernando Veríssimo nos diverte e nos provoca à reflexão. Por que mentimos, homens e mulheres? Resposta recorrente: “para tirar proveito ou prejudicar outros”. Mas essa é a razão menos frequente.

Inicialmente, cabe esclarecer que mentira “não é a simples contrapartida negativa da verdade” (BARBIERI, 2019), pois mentira e verdade podem ser construções autônomas. É possível machucar com a verdade e proteger com a mentira. Mentimos também para sossegar relações afetivas: “Na volta a gente compra”. No Gênesis 18:23-32, Deus mente para acalmar a angústia de Abraão quanto ao injusto destino dos inocentes que viviam em Sodoma. Ou não haveria dez crianças na cidade?

Pode-se evitar a mentira? Em A Insustentável Leveza do Ser, diz-se que “não mentir para os outros ou para si só seria possível se vivêssemos sem público” (KUNDERA, 1985, p.118). Se houver uma única pessoa testemunhando nossos atos, já não somos autênticos. E quanto a mentir para nós mesmos? A psicanálise evidenciou, desde Freud, que convivemos com uma testemunha em tempo integral: nosso inconsciente.

O inconsciente é o “outro eu”, é alguém que desconheço, sobre o qual não tenho controle e que, na verdade, controla quase todos os meus atos (FREUD, 1978). Esse “outro eu” vive entrincheirado no profundo de nosso cérebro, pelos inúmeros traumas vividos desde o primeiro berro do nascer. Ele precisa criar realidades para afastar sofrimentos e potencializar prazeres.

O filme Náufrago é ilustrativo: o personagem vivido pelo ator Tom Hanks, ao se ver solitário em uma ilha remota, personifica um “amigo” em uma bola de futebol, e assume de tal forma essa “verdade” que chora desesperadamente quando a perde.

Vivemos experiências similares o tempo todo, ainda que não nos demos conta, e isso não é intrinsecamente ruim – pelo contrário, pode nos dar forças para responder aos desafios da vida. Inventamos “verdades” para tornar a existência suportável.

Nosso desafio é manter em nível sadio as verdades forjadas do “outro eu”.

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Crédito da imagem: FreePic.

Referências Bibliográficas:

BARBIERI, Cibele Prado. A verdade e a mentira, a política e a psicanálise. Estudos de psicanálise, Belo Horizonte, n. 51, p. 115-124, jun. 2019. Disponível em . acessos em 20 fev. 2022.

FREUD, Sigmund. Cinco Lições de Psicanálise. Tradução de Durval Marcondes e J. Barbosa Correa. In: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

KUNDERA, Milan. A Insustentável Leveza do Ser. Tradução de Teresa B. Carvalho da Fonseca. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

VERÍSSIMO, Luis Fernando. As Mentiras que os Homens Contam. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

Náufrago. Direção e produção: Robert Zemeckis. Estados Unidos da América: DreamWorks Pictures, 2000. DVD.

Written By
Gilberto Vitor

Escritor, pesquisador independente - Literatura, Filosofia, Linguística.

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