Mestra Januária e o Mito do Ipiranga
Uma princesa que assina o decreto da Independência, um príncipe em apuros e uma mestra seleira, rara profissão para uma mulher, cruzam caminhos na tarde de 7 de setembro.
Quando viu a tropa apontar na poeira da estrada, Januária apurou o olhar. Sentada à sua mesa de trabalho no alpendre de sua casa, ela tinha visão privilegiada da movimentação de viajantes e tropeiros que entravam e saíam de São Paulo.
– Para dentro, Rita! Já! – Gritou para a filha de treze anos. Rito de prudência de quem mora à beira de estrada.
Januária suspendeu atenção de seu ofício (tiras de couro estendidas na mesa, martelo, faca de lâmina muito afiada, arte de seleira aprendida do pai) e deitou olhos à tropa que se aproximava. Eram mulas e seus homens montados, observação desnecessária, não haveria de ser o contrário. Àquela distância, já se podia assentir que não era gente de passagem regular. Voltou os olhos à faca que corria o couro com precisão de mãos bem treinadas. Foi quando percebeu a chegada do negro Tião, que amarrou sua mula embaixo do cambucizeiro, fez um rápido afago no dorso do animal e dirigiu-se ao alpendre.
– Boas tardes, Dona Januária. Sinhô Tadeu tem cinco juntas de bois para aparelhar, e lhe espera amanhã.
O escravo doméstico do Sinhô Tadeu apontou olhos na direção da tropa:
– Corre em São Paulo que o príncipe D. Pedro chegaria hoje, mas está atrasado. Será que é ele?
– Com certeza, não é. Tropa desmantelada, não semelha coisa de altezas.
Januária herdara do pai, o falecido mestre seleiro João Vicente, sua arte e seu ponto. O velho mestre criara sua filha única como se fora o filho homem que Deus lhe negara. À mãe, Deus concedera o milagre de uma somente filha, mesmo milagre que já o fizera o mesmo Deus ao bíblico casal Isabel e Zacarias, segundo jura o padre Esmeraldo. Januária teve infância talhada nas tarefas domésticas – cuidar de galinhas, de porcos, uma vaca leiteira e sua eventual cria, braças magras de plantação mirrada para subsistência. Quando lhe despontavam traços de mulher, viu sua mãe baixar à cova. Doenças de quem está vivo, é só o que carece para se morrer.
A tropa avança em pisada acelerada; parece querer chegar a São Paulo antes do anoitecer.
Depois de viúvo, o mestre João Vicente deu-se a ensinar à filha a arte de seleiro, sendo essa a única morgadia que lhe podia testamentar. E quando se diz testamentar, não se pense em papeis e tabeliães, que ali ninguém sabia de letras. Chegada sua hora, o pai seguiu o caminho da mãe. Morreu de quê? De estar vivo, motivo maior não há. Herança, além do ofício, só o sobrenome, porque aquele pedaço de morada era de boa vontade do Sinhô Tadeu ao finado e, agora, a ela estendido. Januária não pagava aluguel, mas também não cobrava ao senhorio por seus trabalhos, era essa a compensação que, sendo justa para quem manda, há de ser justa para quem obedece.
A tropa – não nos descuidemos dela – se aproximava rapidamente.
Do alpendre da casa, em testa à estrada e à boca de São Paulo, Januária assistia a entradas e saídas de viajantes: tropeiros, mascates, aventureiros, gente que ia e vinha atrás de sonhos, que sonhos são para isso mesmo, para a gente não enraizar pés. Naquele alpendre, como antes o mestre seleiro seu pai, Januária exercia sua arte de fabricar e consertar selas e outros artefatos de couro. O alpendre ficava a cinco braças do beiço da estrada, o cambucizeiro ali no meio. As tropas, depois de penosas jornadas, precisam rearranjar selas e dar às montarias melhor feição de dignidade. Januária estava ali para isso.
A tropa está quase quase.
O cambucizeiro, dele falávamos, era árvore de dar generosa sombra. Quase foi esquecido de dizer que uma gaiola pendurada à árvore, como um brinco a uma orelha, palanqueava as toadas de um canário, presente trazido dos sertões dos Goiás, e do presenteador não se pergunte que a dona não fala. Chegando os olhos mais para lá, ainda sob a guarda da acolhedora sombra, uma armação de paus endireitava-se garbosa para exibir selas à venda. Ao par dela, pobre de elegância porém, outra armação para amarrar bestas. Foi ali que Tião amarrou a sua.
Voltemos à chegada da tropa, isso sim nos parece mais urgente, mas a dona da casa faz questão de que saibamos que tudo ali é cuidado com muito zelo, sem deixar de informar que há ainda os encargos de homem que ela mesma assume, que à falta de colhões hão de ser mesmo seus ovários a franzir-lhe o cenho para garantir a proteção ao lusco-fusco de mulher que era a sua filha. Ajudava nessa segurança a onipresença de Sinhô Tadeu, onde não estava ele estava sua fama que todos temiam. Januária tinha ainda sua formosura, e era machezando seus gestos que ela se protegia em um mundo onde homens eles próprios ditam regras para serem por eles mesmos descumpridas. Januária era a única mulher artífice que se conhecia naquela região. Outras, somente de remendar joelhos e bundas das calças de seus maridos, além daquelas dadas às ambrosias. Tinha suas paixões, Januária. Mas nunca encontrou um homem que quisesse para si uma mulher de opinião como ela. Homens têm medo de mulheres de opinião.
Já dá para ouvir o tropel chegante e o palavreado animado de homens. Outra mirada de Januária. Embora roupas desalinhadas, pareciam gente bem equipada. Comitiva do príncipe? Duvideodó! Voltou os olhos em seu trabalho.
Com um olho no peixe e outro no gato, Januária mantém atenção à faca que corre sobre o couro sem deixar de vigiar a tropa que se queda à frente de sua casa. Alguns apearam. Dois dos homens examinam selas expostas à venda. Depois, as botas de um deles se aproximaram dela.
– Boas tardes. O mestre seleiro está?
– O mestre seleiro sou eu – respondeu Januária, sem tirar os olhos do deslizar da lâmina. Longo silêncio, e nova pergunta:
– Quem fez aquelas selas em exposição?
– O mestre seleiro – respondeu Januária. Após outra pausa, durante o qual veio juntar-se outro par de botas, o primeiro continuou:
– Parece trabalho de homem.
– Foram feitas por mulher que sabe fazer trabalho de homem.
Ela ergueu os olhos para ver o homem que a inquiria. Era um sujeito de altura mediana, de seus aproximados quarenta anos, vestido como um oficial de armas, a roupa em desalinho e a barba de pelo menos dois dias. O dono do outro par de botas era mais alto e magro e mais jovem.
– Não sei como se trata uma mulher que faz trabalho de mestre seleiro.
– Carece inventar ainda certas palavras – ironizou Januária – Meu pai era o mestre seleiro João Vicente. Eu sou Dona Januária.
Silêncio. Ela passou os olhos na tropa: eram pouco mais de trinta homens e bem equipadas mulas. Eram homens de armas, não eram tropeiros encontradiços.
– Devo chamá-la por Mestra Januária?
– Se a vossa mercê lhe for de agrado.
O homem se deu conta de que Januária lhe trazia a valente e querida tia Antônia de sua infância.
– Estamos indo em rota de São Paulo…
– Falta pouco mais de meia légua.
– Sabemos, mestra Januária. Conhecemos esse pedaço de chão.
Tratada por mestra, Januária disfarçou sorriso de contentamento, o que não escapou ao capitão, era esse o seu posto militar, e se ainda não foi dito, dito será assim que ele se apresente:
– Sou o capitão-mor Manuel Marcondes de Oliveira e Mello, segundo comandante da guarda de honra do Príncipe Regente. Precisamos de dois de seus préstimos, mestra Januária. A sela que o Príncipe monta carece de reparos, a cilha desmantelou-se. – Apontou para as selas em exposição penduradas na armação embaixo do cambucizeiro – Aquelas selas são para mercar?
– Sim, capitão.
– Queremos comprar-lhe a melhor delas, mestra Januária. O outro préstimo… – o capitão chegou-se mais perto, falando baixinho como em segredo – o Príncipe deseja usar sua sanita.
– Ah!, o Príncipe quer cagar?
O capitão fez uma expressão embaraçada:
– Ele amanheceu tomado por um terrível desarranjo, cólicas cruelíssimas. Por isso tem que montar e apear tão amiúde para se servir no mato.
Januária olhou em direção aos homens para adivinhar quem seria o príncipe dom Pedro. Levantou-se para indicar a casinha da latrina, nos fundos do quintal, e o capitão Marcondes pôde ver que ela era uma mulher de estatura baixa e aspecto frágil, apesar da maçaranduba de seu olhar. O segundo homem foi avisar dom Pedro, ficando o capitão Marcondes em um dos tamboretes à frente da mesa de Januária, que já voltara à sua lida. Em seguida, um homem de altura média passou, seguido por outros dois, certamente de sua guarda. Tinha ele os cabelos revoltos, longas suíças ao par de seus bigodes, pele tostada de sol, aspecto maltratado, ares de mau-humor.
– Aquele é o nosso dom Pedro? Não semelha a um príncipe.
– A estrada é cruel, mestra Januária. E o lombo das mulas, muito desconfortável.
– Cuidava que príncipes montassem corcéis brancos.
O capitão-mor sorriu simpático:
– Cavalos não se prestam a viagens longas e penosas como essas, a senhora sabe.
Januária interrompeu o deslizar de sua faca para examinar mais uma vez os homens da tropa, já todos apeados e reunidos em grupos no redor de suas montarias.
– Para a disenteria do Príncipe, tenho uma mezinha que vai deixá-lo curado antes de chegar a São Paulo.
– Sua Alteza tomou uma dessas mezinhas em passagem por Cubatão, mas, depois de tanto, o desconforto persiste. Como nos garante que a sua lhe fará bem?
– Capitão, disenteria é o que mais temos aqui nesse pedaço de mundo esquecido de Deus. Se não fosse por nossos remédios, São Paulo já teria desaparecido atolado em merda há muito tempo. – E foi se levantando e caminhando para dentro de casa. O capitão fez gesto de acompanhá-la:
– Tenho sua permissão?
Entraram. A sala era um misto com depósito, couros e peças inacabadas pelos cantos, mas não era a bagunça da época do mestre João Vicente, pois a filha impunha zelos de mulher, que assim são elas até na guerra, onde à boca de um fuzil há de embonitar uma flor. Passaram à cozinha, onde Rita estava sentada com um gato no colo. Januária a apresentou:
– Maria Rita, minha filha.
– Menina encantadora, Deus a guarde. Seu marido, quem é?
– É o mesmo mestre seleiro que o senhor conheceu lá fora.
Januária preparou a mezinha à vista do capitão. Fervura de água, infusão de folhas, macerar, coar, pronto! Experimentou, fez careta.
– É ruim, mas é melhor do que dor nas tripas. Já entra curado em São Paulo.
O capitão saiu à busca do Príncipe. De passagem, apresentou João Carlota, com quem a mestra seleira foi tratar de preços das selas.
Ao retornar, Januária encontrou o capitão Marcondes e outro homem sentados à frente de sua mesa. Retomou seu trabalho ouvindo a conversa dos dois. Ouviu o capitão Marcondes chamar ao outro pelo nome Bregaro, e entendeu que fora o responsável por trazer cartas do Rio de Janeiro para o Príncipe. Conversavam em voz baixa, com discrição, ignorando que Januária era uma plateia inteira de curiosidades:
– Dom Pedro é irresoluto, e isso enerva os membros do Conselho d’Estado – disse o Bregaro. – Fonte palaciana me garantiu que a independência já está decidida desde o início de agosto, mas essa hesitação… O próprio pai, D. João, o aconselhou a fazer a independência antes de algum aventureiro para que não se perca aqui a soberania dos Bragança.
– Havendo já a guerra irrompido no Norte, as coisas haverão de acontecer mais depressa agora.
– Certamente. Após a vitória dos pernambucanos, que estabeleceram seu próprio governo, era previsível que outras províncias os seguissem.
– Que novidades temos da sublevação dos baianos?
– O governador Madeira de Melo despachou uma embarcação militar a subir o rio Paraguaçu para reprimir os rebeldes no Recôncavo.
– Disso sou avisado. A guerra estourou em junho às portas de Cachoeira.
– Por enquanto, – continuou o Bregaro – os revoltosos juram-se fiéis a dom Pedro. Mas, teme-se por quanto tempo, já que o Príncipe hesita. Foi-se agosto, estamos em sete de setembro, e as lutas na Bahia se intensificam. O Príncipe prefere conversar com fazendeiros insatisfeitos de São Paulo a evitar tanto derramamento de sangue naquelas batalhas.
– Bem, agora que a Princesa Leopoldina assinou decreto da independência do Brasil, os pingos serão colocados nos devidos Is.
– A Princesa tem sua tenacidade. Em face dessas guerras e das afrontas que chegam dos constitucionalistas de Lisboa, ela convocou o Conselho d’Estado e assinou o decreto. Fê-lo na manhã do dia dois. Na mesma tarde, fomos despachados para trazer as notícias ao Príncipe.
– Agora, resta a ele proclamar formalmente esse decreto de separação tão logo chegue a São Paulo.
– A medir por sua exasperação quando leu as cartas à margem daquele riacho, creio que ele não vê outra opção.
Neste momento, ouviu-se um grito: “Capitão!”. Levantaram-se os dois, e se afastaram. Os homens da comitiva permaneciam proseando ao pé de suas montarias enquanto aguardavam ordens.
Daí a pouco, o capitão retornou:
– Mestra Januária, em nome do príncipe dom Pedro de Alcântara e de nosso primeiro comandante, coronel Antônio Leite da Gama Lobo, agradecemos seus bons préstimos. Já escurece, e Sua Alteza deseja chegar a São Paulo antes do completo anoitecer.
O capitão viu pela primeira vez Januária esboçar um sorriso:
– Nunca pensei que eu curaria o Príncipe de uma caganeira.
– A senhora poderá dizer que curou o novo soberano de um Brasil soberano, mestra Januária. A senhora tem ouvidos, e eles ouviram o que se disse à sua frente.
– Entendi que a Princesa assinou um decreto que separa o Brasil de Portugal.
– Sim, assinou-o Dona Leopoldina, a Princesa Regente. É ela quem governa enquanto o Príncipe viaja. O dia dois de setembro haverá de ser dia histórico, mestra Januária. O dia em que o Brasil se tornou independente de Portugal.
– Uma mulher libertou o Brasil, quem haveria de dizer! – repetiu Januária, com admiração.
– Se há até mestra seleira neste mundo, – o capitão sorria – por que não haveria de existir princesas que libertam nações?