A imparável marcha das mudanças e o papel inglório dos conservadores.
Tenho Lido

A imparável marcha das mudanças e o papel inglório dos conservadores.

Ninguém rende homenagens aos que diziam que o fim da escravidão acabaria com o Brasil, que a jornada de oito horas de trabalho, férias, décimo-terceiro e outros direitos trabalhistas levariam

  • Publishedagosto 31, 2021

Ninguém rende homenagens aos que diziam que o fim da escravidão acabaria com o Brasil, que a jornada de oito horas de trabalho, férias, décimo-terceiro e outros direitos trabalhistas levariam as empresas à falência. Pelo mesmo motivo ninguém, no futuro, lembrará dos que gritam contra relacionamentos homoafetivos, igualdades raciais e de gênero ou direitos trabalhistas.

A única constante é a mudança”, disse-o Heráclito de Éfeso. Nem isso, responde Luís de Camões em soneto:

“E, afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto,
Que não se muda já como soía”.

Muda-se até mesmo a forma como as mudanças ocorrem.

No imparável curso das mudanças, sofrem mais os conservadores. Não neguemos, porém, que eles desempenham seu papel de importância: o avião precisa vencer a resistência do ar para se deslocar, mas é o ar que permite ao avião voar com estabilidade e segurança. Esse papel importante de estabilizador das mudanças cabe, no campo social, ao conservador.

Por isso, louvem-se os conservadores.

Mas a história reserva a eles um papel inglório. Ninguém lembra dos nomes daqueles que exigiam que as escolas de seus filhos recusassem matrículas de filhos de mães separadas; ou dos que gritavam que o divórcio acabaria com a “família tradicional”. Ninguém rende homenagens aos que diziam que o fim da escravidão acabaria com o Brasil, que a jornada de oito horas de trabalho, férias, décimo-terceiro e outros direitos trabalhistas levariam as empresas à falência. Pelo mesmo motivo ninguém, no futuro, renderá homenagens aos que gritam contra relacionamentos homoafetivos, igualdades raciais e de gênero ou direitos trabalhistas. São vozes que, como sempre, a História descartará em seu lixo.

E os conservadores enfrentam ainda outro drama: por sua natureza, não conseguem aprender novos valores e linguagem das novas gerações, e assim costumam ter maiores conflitos com elas; especialmente, com seus filhos.

Há os conservadores moderados, é certo; esses apenas querem mudanças seguras. E há aqueles que alimentam suas convicções na defesa de privilégios da mais grossa ignorância (“foi para ver gente sem classe em meu restaurante favorito que eu estudei tanto?”). Desses trata Saramago em seu “Ensaio sobre a Lucidez”: os que, quando jovens, sonhavam com um mundo mais igual e solidário, mas que, após repoltreados em ilusórios privilégios, rendem-se ao mais reacionário egoísmo. Saramago não os perdoa: “diante do espelho de sua vida, cospem todos os dias na cara do que foram o escarro do que são”.

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Imagem: Filme “De que horas ela volta?” (2015), escrito e dirigido por Ana Muylaert. Na cena, as atrizes Regina Casé e Karine Teles.

Referências bibliográficas:

CAMÕES, Luís de. Lírica: Redondilhas e sonetos. Introdução de Geir Campos; seleção e notas de Massaud Moisés. Rio de Janeiro: Ediouro, 1997.

SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

Written By
Gilberto Vitor

Escritor, pesquisador independente - Literatura, Filosofia, Linguística.

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