Como a Literatura dá alma e cor à História.
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Como a Literatura dá alma e cor à História.

A História é seletiva e discriminatória, reportando apenas o que julga ser material de valor relevante para a narrativa da visão do vencedor. Cabe aos romancistas completá-la em vida e

  • Publishedmaio 15, 2020

A História é seletiva e discriminatória, reportando apenas o que julga ser material de valor relevante para a narrativa da visão do vencedor. Cabe aos romancistas completá-la em vida e cores com a alma, alegrias, paixões e dores da gente que testemunhou os fatos. E revelando, na verdade de sua ficção, a sabedoria da dúvida – “assim foi, parece”. De que forma a Literatura enriquece a História?

Adaptação de quadro Independência ou Morte, de Pedro Américo (1888)

Você é feito das experiências acumuladas do seu redor; seus quereres e seus temores são os quereres e temores moldados pelos séculos na alma do seu redor. Se você não conhece a alma do seu redor, você não poderá compreender o seu próprio ser. Para isso serve a História.

Mas a História é uma narradora sem poesia. Presa ao rigor de seus métodos científicos, falta-lhe alma, faltam-lhe cores. Ocupando-se somente de soberanos, impérios, datas e glórias, a História é uma narradora sisuda e insossa, e tem uma predileção suspeita pelas elites. Entre fidalgos e plebeus, não duvide de com quem ela se sentará à mesa. É certo que às vezes até se dá o trabalho de registrar nomes de gente do populacho, heróis involuntários eternizados como alguém que atravessava o campo da objetiva no preciso momento em que a História premia o obturador.

No caderno da História do Brasil está registrado e lavrado, e dou fé, que Juscelino construiu Brasília, e não se pense em Juscelino com prumo e colher de pedreiro à mão, essa é só uma maneira de dizer que um certo Pedro tombou embaixo de uma pedra, são assim os acidentes, e foi registrado em caderno à parte, o da alma da História, que aquele Pedro, pedreiro de ocupação, beijara sua mulher e seu filho, única ela ou único o filho, não restou certeza, mas há sim certeza de que sua gente chorou Pedro, que é o que fazem aqueles que amam, garante-nos Chico Buarque.

A História ensina, grave e solene, que a revolução industrial gerou a classe operária, e esta faria emergir os movimentos e lutas sindicais no século XX. Mas foi Émile Zola (1840-1902) quem, com seu Germinal, registrou que “classe operária” tem lágrimas e sorrisos nos olhares de homens e mulheres. Enriquecendo de cores a História, ele deu nomes à gente daquele populacho, e não se deixou perderem seus sonhos, seus amores e suas dores.

História e romances – ficção honesta, fatos seletivos.

A História às vezes registra coisas que leva um estudioso menos crédulo a pedir mil perdões, data vênia, senhora, é que há aqui uma coisa difícil de crer, não me leve a mal, mas diz aqui que um alferes, gente da plebe, como se sabe, teria liderado uma conspiração que contava com gente do clero e da fidalguia. Mas essas são coisas de especialistas, não ousemos navegar em águas de que não sabemos. A historiografia tem as suas técnicas sobre as quais repousam a confiança de seus assertos e, sim, perdão, nesse caso é mesmo com ss que se escreve com acerto nesta sua linguagem grave e cerimoniosa.

Ah, os incrédulos! Por coisas assim, o revisor Raimundo duvidou de algumas afirmações da História do Cerco de Lisboa (SARAMAGO, 1989). E se há tantos pilares mal calçados a sustentar verossimilhanças, não deveria fazer muita diferença se os Cruzados ajudaram os portugueses a reconquistar Lisboa aos mouros ou se apenas desejaram boa sorte a dom Afonso Henriques e seguiram seu caminho para combater na Terra Santa, para isso é que eles vinham navegando desde o norte da Europa. E o dito revisor acrescentou um rotundo não onde séculos de História sempre repetiram que sim. Depois dessa ousadia, o revisor Raimundo foi estimulado a escrever sua própria versão do cerco de Lisboa (SARAMAGO, 1989, p. 120), e então Saramago, magistralmente, acrescenta alma a esse importante fato do nascimento da nação portuguesa.

Há que se respeitar a verdade histórica, é fato, e se o substantivo verdade se faz acompanhar pelo adjetivo histórica, talvez se trate de um tipo diferente do que por comum se entenda o desacompanhado vocábulo verdade. Parece ser mais penhorada ao de-veras a forma de narrar dos machiguengas da Amazônia peruana, de que trata Mário Vargas Llosa em seu romance O Falador: lá, os narradores daquela nação indígena começam as verazes narrativas de suas tradições com “assim foi, talvez”, “assim foi, parece” (LLOSA, 1988). Há mais sabedoria na dúvida que na certeza, e é com a primeira que a verdade costuma morar.

A Literatura não substitui a História, apenas a completa para dar-lhe essa sabedoria machinguenga. Na ficção literária, o acordo tácito que se firma entre quem escreve e quem lê (“assim foi, talvez”) permite à sabedoria do leitor dar completude às verdades históricas.

A História o deixou registrado como fato incontroverso e documentado, avalizado pelos historiadores e confirmado pelo romancista, a quem haverá que perdoar certas liberdades em nome, não só do direito de inventar, mas também da necessidade de preencher os vazios” (SARAMAGO, 2008, p. 224).

Dando alma à História

Naquele dia 15 de novembro de 1889, o marechal Deodoro da Fonseca foi acordado ainda madrugada. Estava doente o marechal, mas não adiantou protestar: “Não podemos adiar, meu marechal; a História não pode esperar. Imagine o senhor que vexame aos nossos professores se tiverem que alertar erratas de seus livros em sala de aula, não foi dia 15, queridos alunos, foi dia 16 porque o marechal estava com dispneia”. E o marechal, contrariado, vestiu sua farda e foi, monarquista ele próprio, escrever o fim da Monarquia e instaurar a República.

No fundo, há que reconhecer que a História não é apenas selectiva, é também discriminatória, só recolhe da vida o que lhe interessa como material socialmente tido por histórico e despreza todo o resto, precisamente onde talvez poderia ser encontrada a verdadeira explicação dos fatos” (SARAMAGO, 2008, p. 225).

Enquanto a História contava os aperreios da moribunda monarquia e as tramoias da República que já nascia velha, Machado de Assis lhe dava alma pelas vidas de Quincas Borba, Braz Cubas, Bentinho e Capitu. Com Clara dos Anjos e o escrivão Isaías Caminha, o escritor Lima Barreto mostrava que a realidade dos negros e pardos há cem anos já era tal como hoje. Aluízio de Azevedo, com seu O Cortiço, nos antecipava que nossa alma empreendedora do século XXI já estava viva e igual no João Romão daquele início da República.

Como conhecer nossa História sem a sensibilidade desses cronistas geniais? Como conhecer nossos santos pecados carnais, onde a alma pulsa mais viva, se a poesia de Gregório de Matos não os tivesse imortalizado na Salvador seiscentista?

A História, como ciência, é uma narradora sisuda e sem poesia. Mas, na companhia da boa literatura de nossos romancistas e poetas, ela fica não apenas mais completa e verdadeira, como ganha também vida e beleza, permitindo-nos compreender a alma do nosso redor. Na literatura está a compreensão da alma de cada um de nós.

Referências bibliográficas:

Llosa, Mário Margas. O Falador. Tradução de Remy Gorga, filho. Rio de Janeiro: Francisco Alves. 1988.

Saramago, José. História do Cerco de Lisboa. São Paulo: Companhia das Letras,1989.

Saramago, José. A viagem do elefante. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

Outras obras mencionadas:

Clara dos Anjos, de Lima Barreto (1948).

Dom Casmurro, de Machado de Assis (1899).

Germinal, de Émile Zola (1885).

Memórias Póstumas de Braz Cubas, de Machado de Assis (1881).

O Cortiço, de Aluísio de Azevedo (1890).

Pedro Pedreiro (música), de Chico Buarque (1965).

Quincas Borba, de Machado de Assis (1891).

Recordações do Escrivão Isaías Caminha, de Lima Barreto (1909).

Written By
Gilberto Vitor

Escritor, pesquisador independente - Literatura, Filosofia, Linguística.

1 Comment

  • Muito bom, Gilberto!
    Adorei a visão da Literatura dando alma e cores à História: você nomeia o que, às vezes, sentimos ou sabemos, mas não conseguimos expressar em palavras. E isso você faz com talento e competência.
    Parabéns!

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