Como a Literatura dá alma e cor à História.
A História é seletiva e discriminatória, reportando apenas o que julga ser material de valor relevante para a narrativa da visão do vencedor. Cabe aos romancistas completá-la em vida e
A História é seletiva e discriminatória, reportando apenas o que julga ser material de valor relevante para a narrativa da visão do vencedor. Cabe aos romancistas completá-la em vida e cores com a alma, alegrias, paixões e dores da gente que testemunhou os fatos. E revelando, na verdade de sua ficção, a sabedoria da dúvida – “assim foi, parece”. De que forma a Literatura enriquece a História?
Você é feito das experiências acumuladas do seu redor; seus quereres e seus temores são os quereres e temores moldados pelos séculos na alma do seu redor. Se você não conhece a alma do seu redor, você não poderá compreender o seu próprio ser. Para isso serve a História.
Mas a História é uma narradora sem poesia. Presa ao rigor de seus métodos científicos, falta-lhe alma, faltam-lhe cores. Ocupando-se somente de soberanos, impérios, datas e glórias, a História é uma narradora sisuda e insossa, e tem uma predileção suspeita pelas elites. Entre fidalgos e plebeus, não duvide de com quem ela se sentará à mesa. É certo que às vezes até se dá o trabalho de registrar nomes de gente do populacho, heróis involuntários eternizados como alguém que atravessava o campo da objetiva no preciso momento em que a História premia o obturador.
No caderno da História do Brasil está registrado e lavrado, e dou fé, que Juscelino construiu Brasília, e não se pense em Juscelino com prumo e colher de pedreiro à mão, essa é só uma maneira de dizer que um certo Pedro tombou embaixo de uma pedra, são assim os acidentes, e foi registrado em caderno à parte, o da alma da História, que aquele Pedro, pedreiro de ocupação, beijara sua mulher e seu filho, única ela ou único o filho, não restou certeza, mas há sim certeza de que sua gente chorou Pedro, que é o que fazem aqueles que amam, garante-nos Chico Buarque.
A História ensina, grave e solene, que a revolução industrial gerou a classe operária, e esta faria emergir os movimentos e lutas sindicais no século XX. Mas foi Émile Zola (1840-1902) quem, com seu Germinal, registrou que “classe operária” tem lágrimas e sorrisos nos olhares de homens e mulheres. Enriquecendo de cores a História, ele deu nomes à gente daquele populacho, e não se deixou perderem seus sonhos, seus amores e suas dores.
História e romances – ficção honesta, fatos seletivos.
A História às vezes registra coisas que leva um estudioso menos crédulo a pedir mil perdões, data vênia, senhora, é que há aqui uma coisa difícil de crer, não me leve a mal, mas diz aqui que um alferes, gente da plebe, como se sabe, teria liderado uma conspiração que contava com gente do clero e da fidalguia. Mas essas são coisas de especialistas, não ousemos navegar em águas de que não sabemos. A historiografia tem as suas técnicas sobre as quais repousam a confiança de seus assertos e, sim, perdão, nesse caso é mesmo com ss que se escreve com acerto nesta sua linguagem grave e cerimoniosa.
Ah, os incrédulos! Por coisas assim, o revisor Raimundo duvidou de algumas afirmações da História do Cerco de Lisboa (SARAMAGO, 1989). E se há tantos pilares mal calçados a sustentar verossimilhanças, não deveria fazer muita diferença se os Cruzados ajudaram os portugueses a reconquistar Lisboa aos mouros ou se apenas desejaram boa sorte a dom Afonso Henriques e seguiram seu caminho para combater na Terra Santa, para isso é que eles vinham navegando desde o norte da Europa. E o dito revisor acrescentou um rotundo não onde séculos de História sempre repetiram que sim. Depois dessa ousadia, o revisor Raimundo foi estimulado a escrever sua própria versão do cerco de Lisboa (SARAMAGO, 1989, p. 120), e então Saramago, magistralmente, acrescenta alma a esse importante fato do nascimento da nação portuguesa.
Há que se respeitar a verdade histórica, é fato, e se o substantivo verdade se faz acompanhar pelo adjetivo histórica, talvez se trate de um tipo diferente do que por comum se entenda o desacompanhado vocábulo verdade. Parece ser mais penhorada ao de-veras a forma de narrar dos machiguengas da Amazônia peruana, de que trata Mário Vargas Llosa em seu romance O Falador: lá, os narradores daquela nação indígena começam as verazes narrativas de suas tradições com “assim foi, talvez”, “assim foi, parece” (LLOSA, 1988). Há mais sabedoria na dúvida que na certeza, e é com a primeira que a verdade costuma morar.
A Literatura não substitui a História, apenas a completa para dar-lhe essa sabedoria machinguenga. Na ficção literária, o acordo tácito que se firma entre quem escreve e quem lê (“assim foi, talvez”) permite à sabedoria do leitor dar completude às verdades históricas.
“A História o deixou registrado como fato incontroverso e documentado, avalizado pelos historiadores e confirmado pelo romancista, a quem haverá que perdoar certas liberdades em nome, não só do direito de inventar, mas também da necessidade de preencher os vazios” (SARAMAGO, 2008, p. 224).
Dando alma à História
Naquele dia 15 de novembro de 1889, o marechal Deodoro da Fonseca foi acordado ainda madrugada. Estava doente o marechal, mas não adiantou protestar: “Não podemos adiar, meu marechal; a História não pode esperar. Imagine o senhor que vexame aos nossos professores se tiverem que alertar erratas de seus livros em sala de aula, não foi dia 15, queridos alunos, foi dia 16 porque o marechal estava com dispneia”. E o marechal, contrariado, vestiu sua farda e foi, monarquista ele próprio, escrever o fim da Monarquia e instaurar a República.
“No fundo, há que reconhecer que a História não é apenas selectiva, é também discriminatória, só recolhe da vida o que lhe interessa como material socialmente tido por histórico e despreza todo o resto, precisamente onde talvez poderia ser encontrada a verdadeira explicação dos fatos” (SARAMAGO, 2008, p. 225).
Enquanto a História contava os aperreios da moribunda monarquia e as tramoias da República que já nascia velha, Machado de Assis lhe dava alma pelas vidas de Quincas Borba, Braz Cubas, Bentinho e Capitu. Com Clara dos Anjos e o escrivão Isaías Caminha, o escritor Lima Barreto mostrava que a realidade dos negros e pardos há cem anos já era tal como hoje. Aluízio de Azevedo, com seu O Cortiço, nos antecipava que nossa alma empreendedora do século XXI já estava viva e igual no João Romão daquele início da República.
Como conhecer nossa História sem a sensibilidade desses cronistas geniais? Como conhecer nossos santos pecados carnais, onde a alma pulsa mais viva, se a poesia de Gregório de Matos não os tivesse imortalizado na Salvador seiscentista?
A História, como ciência, é uma narradora sisuda e sem poesia. Mas, na companhia da boa literatura de nossos romancistas e poetas, ela fica não apenas mais completa e verdadeira, como ganha também vida e beleza, permitindo-nos compreender a alma do nosso redor. Na literatura está a compreensão da alma de cada um de nós.
…
Referências bibliográficas:
Llosa, Mário Margas. O Falador. Tradução de Remy Gorga, filho. Rio de Janeiro: Francisco Alves. 1988.
Saramago, José. História do Cerco de Lisboa. São Paulo: Companhia das Letras,1989.
Saramago, José. A viagem do elefante. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
Outras obras mencionadas:
Clara dos Anjos, de Lima Barreto (1948).
Dom Casmurro, de Machado de Assis (1899).
Germinal, de Émile Zola (1885).
Memórias Póstumas de Braz Cubas, de Machado de Assis (1881).
O Cortiço, de Aluísio de Azevedo (1890).
Pedro Pedreiro (música), de Chico Buarque (1965).
Quincas Borba, de Machado de Assis (1891).
Recordações do Escrivão Isaías Caminha, de Lima Barreto (1909).
1 Comment
Muito bom, Gilberto!
Adorei a visão da Literatura dando alma e cores à História: você nomeia o que, às vezes, sentimos ou sabemos, mas não conseguimos expressar em palavras. E isso você faz com talento e competência.
Parabéns!