Dom Quixote, Freud e Machado: o humor que liberta e acolhe.
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Dom Quixote, Freud e Machado: o humor que liberta e acolhe.

Por que amamos Dom Quixote e a pena do nosso Machado de Assis? É Freud quem nos responde.

  • Publishedabril 15, 2023

 Cervantes, com seu Dom Quixote, foi talvez o primeiro ficcionista a fazer efetivo uso do humor em sua forma acolhedora e empática. Talvez seja essa uma das grandes razões, quem sabe a maior, de ser ele tão amado ao longo dos séculos.  Outros tiveram êxito em lhe seguir, como Laurence Sterne e nosso Machado de Assis. Humor empático – é Freud quem nos revela, em suas obras O chiste e sua relação com o inconsciente (1905) e O humor (1927), a diferença entre a piada e o humor, e os relaciona a processos psíquicos.

O chiste, objeto da primeira obra, é a piada comum, é o que nos provoca risos efusivos e um prazer intenso em compensação a algo que nos oprime. Em geral, faz de um terceiro o objeto do riso. O chiste, diz Freud, vem do inconsciente e busca compensar, no piadista, uma força recalcada por condicionamentos repressores; dele se serve também a audiência, ansiosa igualmente por se libertar de seus próprios fatores opressivos. Nas palavras de Freud, o chiste “coloca o ganho do prazer a serviço da agressão” (1927/2021, p. 276). Seus acionadores são os mesmos do choro, mas manifesta-se por canal diverso, sendo ambos, o chiste e o pranto, reações ao recalque, ao desejo frustrado. Machado (2018, p.222) parece antecipar as palavras de Freud em seu romance Quincas Borba, publicado em folhetins entre 1885 e 1891, quando assim o finaliza:

Chora os dois recentes mortos, se tens lágrimas. Se só tens risos, ri-te. É a mesma coisa. O Cruzeiro […] está assaz alto para não discernir os risos das lágrimas dos homens.

O humor, objeto do segundo citado estudo de Freud, não provoca risos inflamados ou gargalhadas, não alcança o prazer agudo da piada, mas “esse prazer pouco intenso assinala – sem que se saiba realmente por que – um caráter bastante valorizado, nós o sentimos como particularmente libertador e elevado” (Freud, 1927/2021, p. 279). Diferentemente do chiste, esse humor não vem diretamente do inconsciente, mas sofre, antes, a mediação do Supereu. O humor toma como objeto a própria pessoa que o expressa, e está relacionado à sublime capacidade de rir-se de si mesmo. Está ligado, segundo Freud (1927/2021, p. 275)

“à afirmação vitoriosa da invulnerabilidade do eu. Ele recusa a se melindrar por algo causado pela realidade, a se deixar pressionar pelo sofrimento, teimando que os traumas do mundo exterior não podem lhe afligir, mostrando, desse jeito, que estes lhe são apenas oportunidades para o ganho do prazer”.

Em seu romance Casa Velha, publicado entre 1885 e 1886, Machado de Assis (2011, p. 57) parece antecipar os estudos de Freud: “quis rir de mim mesmo e dos meus planos de Dom Quixote, remédio heroico, porque é tal a risada do apupo que ninguém a tolera ainda em si mesmo”. Rir de si mesmo é heroico e libertador, concordam nosso Machado e o pai da Psicanálise.

Embora por razão diversa, quando interrogado sobre quem seria a mulher que inspirara sua Madame Bovary, Gustave Flaubert respondeu “Emma Bovary c´est moi”. Quem sabe, igualmente instado, Cervantes, que concebeu Dom Quixote nos amargos do cárcere, responderia “Don Quijote soy yo”. Laurence Sterne, confessado admirador de Dom Quixote, em sua vida pouco entusiasmada de pároco no interior da Irlanda, às voltas com aflições de saúde e de um casamento problemático quando escreveu sua obra prima Tristram Shandy, diria talvez “I am Uncle Toby”. Nosso Machado de Assis, afrodescendente às voltas com sabe-se lá quantas angústias em um país escravocrata, tendo claramente Tristram Shandy e Dom Quixote entre seus influenciadores, diria ser ele o seu Rubião, mais do que seus Quincas Borba ou Brás Cubas.

Dom Quixote é o personagem risível, o louco, o tolo; mas ele nos provoca empatia. A genialidade de Cervantes está em tornar tão empático o objeto do gracejo que chega a colocá-lo como espelho risível que nos provoca um prazer verdadeiramente “libertador e elevado”, como se ríssemos de nós mesmos.  

Amamos Dom Quixote e a pena de Machado de Assis porque, em seu humor sutil, nos permitem rir do personagem de que nos vestimos, alçando-nos à grandeza de nos rirmos de nossas próprias aflições.

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 Vídeo relacionado no Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=q7VGqFUlgZs

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Bibliografia:

Assis, Machado de. A Casa Velha. Porto Alegre: L&PM, 2011.

Assis, Machado de. Quincas Borba. São Paulo: La Fonte, 2018.

Freud, S. (2021). O Humor. In Freud, S. Arte, Literatura e os Artistas. Tradução de Ernani Chaves. Belo Horizonte: Autêntica. (Trabalho original publicado em 1927).

Sterne, Laurence. A vida e as opiniões do cavalheiro Tristram Shandy. Tradução e notas de João Paulo Paes. São Paulo: Penguin – Companhia das Letras, 2022. 

 

Written By
Gilberto Vitor

Escritor, pesquisador independente - Literatura, Filosofia, Linguística.

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