Gula, esse pecado da carne: quando o réu é mais vítima do que pecador.
Tenho Lido

Gula, esse pecado da carne: quando o réu é mais vítima do que pecador.

Resistir ao gozo supremo de sua comida preferida, preparada por um chef especialmente talentoso, mesmo sabendo que ela provavelmente o matará no dia seguinte. É com esse dilema que Luís

  • Publishedjaneiro 11, 2022

Resistir ao gozo supremo de sua comida preferida, preparada por um chef especialmente talentoso, mesmo sabendo que ela provavelmente o matará no dia seguinte. É com esse dilema que Luís Fernando Veríssimo brinca com a gula em seu livro O Clube dos Anjos, da coleção Plenos Pecados (Objetiva).

Dez amigos formam o “Clube do Picadinho” que os anos e os fracassos pessoais trataram de definhar. Até que surge um certo Lucídio, habilidoso em preparar seus pratos preferidos. As antigas reuniões do “clube” são retomadas com entusiasmo em torno de especiais rituais gastronômicos. Mas, no dia seguinte a cada banquete, um dos membros morre. As reuniões vão se sucedendo com cada vez menos integrantes, que não conseguem resistir aos petiscos de Lucídio, mesmo quando sabem quem provavelmente será o próximo.

Veríssimo abre o livro com uma suposta “máxima japonesa”: “Todo desejo é um desejo de morte”. E aqui ele parece nos remeter à pulsão de morte de Freud retrabalhada por Lacan: “toda a pulsão é virtualmente pulsão de morte”. Freud já propusera essa cumplicidade entre as pulsões (impulsos, desejos) da vida e da morte. Uma pulsão da morte como irmã gêmea da pulsão da vida (segundo Freud), ou ambas como duas caras da mesma pulsão (segundo Lacan).

Caso real: certo senhor diabético hospitalizado com crise grave faleceu depois de alguns dias em coma. Semanas depois, sua viúva descobriu que o finado passava tardes com um novo amigo vendedor de doces, em animadas e adoçadas conversas. Secretamente, trocava sua vida pelos prazeres das cocadas.

Quando Tomás de Aquino fala dos “pecados da carne”, diz que o pecado da luxúria cega o homem, e o da gula turva sua mente. Mas, e se Aquino, equivocado, trocou de réu, e os tais “pecados da carne” forem, na verdade, do espírito? “Sou mais vítima de pecados do que pecador”, diz o Lucídio de Veríssimo (p.91), mas poderia ser resposta da injustiçada carne. Se o preço para que seu espírito goze de tão sublimes prazeres for matar sua carne, isso importa?
“Vocês eu não sei, mas eu não me importo”, responde espirituosamente um dos membros do Clube dos Anjos (p.87).

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Imagem: Pexels

Referências Bibliográficas:

AQUINAS, Thomas. The Complete Works of Thomas Aquinas (Catholic Publishing). Material compiled from Omaha-NE: Kindle Editions, 2018 (parte 2 do livro 2, questão 35, p.2667).

FREUD, Sigmund. O Mal-Estar da Civilização In Os Pensadores. Tradução de José Octávio de Aguiar Abreu. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

VERÍSSIMO, Luís Fernando. O Clube dos Anjos. Coleção Plenos Pecados. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 1998.

Written By
Gilberto Vitor

Escritor, pesquisador independente - Literatura, Filosofia, Linguística.

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