Intolerância política: O que a Guerra de Canudos pode nos ensinar.
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Intolerância política: O que a Guerra de Canudos pode nos ensinar.

Quando as pessoas se dividem em polos antagônicos em que cada lado, agarrando-se cegamente às suas convicções, não consegue entender os pontos de vistas e convicções do outro, estabelece-se o

  • Publishedmaio 8, 2020

Quando as pessoas se dividem em polos antagônicos em que cada lado, agarrando-se cegamente às suas convicções, não consegue entender os pontos de vistas e convicções do outro, estabelece-se o cenário triste e perigoso que Euclides da Cunha relata e lamenta em Os Sertões. Neste trabalho, debruçamo-nos sobre as lições da experiência de Canudos para entender como frear a escalada da intolerância que se desenha em nossos dias.

Em 2 de outubro de 1897, o fotógrafo Flávio de Barros, a serviço do Exército da República brasileira, que combatia os sertanejos sitiados em Canudos, fotografou o que foi descrito como “Os 400 jagunços prisioneiros”. Mas a verdade que a fotografia desnuda é, ao contrário, um amontoado desolador de mulheres, velhos e crianças, figuras esquálidas, famintas. O registro é um retrato de uma ferida em nossa História, um massacre estúpido que macula nossas instituições de poderes civil e militar – governos, imprensa, exército. Em Canudos, fanáticos ignorantes do povo foram massacrados a mando de ignorantes fanáticos de nossas elites.

Para entender as divisões ideológicas que acendem debates nas redes sociais, criam inimizades e cultivam discursos de ódio, a obra Os Sertões, de Euclides da Cunha (1866-1909) tem lições insuperáveis. Em uma palestra na Universidade de Chicago, em 2017, o escritor peruano e Prêmio Nobel de Literatura Mário Vargas Llosa disse que “Os Sertões é indispensável para entender o que a América Latina é e, particularmente, o que a América Latina não é. [..] O que aconteceu em Canudos é algo que tem acontecido em toda a América Latina, com diferentes circunstâncias justificadoras” (tradução nossa) (LLOSA, 2020, 32’).

O que aconteceu no início da República, que levou ao desastre de Canudos, e o que isso pode nos ensinar para entender nossos embates políticos atuais?

O que foi a Guerra de Canudos.

Em 1889, um ano após a abolição da escravatura no Brasil, um golpe civil-militar extinguiu a Monarquia e instaurou a República. Foi um movimento quase sem resistência, em que o Exército foi levado ao protagonismo de um movimento político de engenho das elites econômica e intelectual brasileiras (Doravante, para elites econômica e intelectual, adotaremos apenas o plural do verbete “elite”, em sua definição sociológica – “Minoria mais culta ou mais forte, dominante no grupo”).

Naquela época, os vários sertões brasileiros viviam abandonados pelo governo (tanto o imperial quanto o da República que o seguiu), em uma relação de patrimonialismo em que governos governavam prioritariamente para os interesses das elites. Esse abandono era gritante nos sertões no Nordeste. Entre 1877 e 1879, aquela região foi atingida por talvez a mais terrível de suas secas. A República recém nascida encontrou milhares de famintos perambulando por aqueles sertões. Havia entre eles muitos ex-escravos e numerosos pequenos agricultores que perderam suas terras para o latifúndio.

Sem esperanças, abandonados pelo Estado que deles lembrava apenas para recolher impostos nos preços do pouco que consumiam, esses peregrinos podiam buscar conforto apenas em sua fé, e passaram a seguir pregadores da esperança no seu Cristo Salvador. Entre esses pregadores, o mais notório foi Antônio Vicente Mendes Maciel, o Antônio Conselheiro, que juntou em torno de si uma multidão de fiéis e se estabeleceu no Arraial de Canudos, no sertão da Bahia. Essa grande comunidade de abandonados chamou a atenção das autoridades da República. E teve início a guerra em que as elites republicanas mandariam o Exército que dizimaria os sertanejos de Canudos. E quantos morreram? 20 mil, 30 mil, 40 mil, não se sabe.

Mas o que dividiu aqueles dois lados de combate?

As convicções dos sertanejos de Antônio Conselheiro.

Os sertanejos que seguiam Antônio Conselheiro eram profundamente devotados à única coisa que lhes confortava a vida de miséria e abandono – a fé cristã. Conselheiro era um líder religioso católico de muito carisma, e tinha uma forte convicção em seu papel em guiar seu povo para Deus e na luta contra Satanás.

As iniciativas emanadas pela República não faziam sentido para os valores daquela gente. A separação entre Estado e Igreja, e a obrigatoriedade do casamento civil lhes pareceram afronta a Deus e aos sacramentos cristãos – a bênção de Deus ao casamento não era mais suficiente? A República não reconhece Deus como poder sagrado? Se assim é, então a República é inimiga de Jesus. A certeza de que se tratava do Anticristo se confirmou com os primeiros ataques das forças da República. Essa certeza fazia sentido para os sertanejos que consagravam suas vidas à fé e à religiosidade, e eles estavam dispostos a dar a vida por suas convicções religiosas. Ante o poder do anticristo, eles jamais se renderiam.

As convicções das elites republicanas.

As elites republicanas entenderam que aquela era uma comunidade rebelde insuflada por lideranças monarquistas, e como tal deveria ser combatida. Para isso, o governo da Bahia despachou duas expedições sucessivas de forças para combatê-la. Ambas foram derrotadas pelos devotos do Conselheiro. Isso provocou um escândalo que chegou à capital da República.

Quando a elite intelectual não compreende uma situação, lembra-nos Vargas Llosa (2020, 12’), ela inventa uma teoria. Mas, em vez de testar a validade de sua teoria contra evidências razoáveis, ela sai à cata de evidências que a validem. É isso que equivocadamente fazemos quase todos nós quando uma teoria nos parece razoável a priori. E a teoria inventada para satisfazer a incapacidade de compreender a situação era de que os sertanejos estavam sendo armados e treinados por monarquistas, incluindo a própria Inglaterra. Haveria oficiais britânicos e armas inglesas em Canudos, garantiam os republicanos.

Uma expedição do Exército nacional foi enviada sob o comando do enérgico coronel Moreira César, fanático republicano. Para maior fúria nacional, essa expedição foi derrotada e o próprio Moreira César, de alcunha “o corta-cabeças”, tombou em campo de batalha.

Estava comprovado o complô monarquista para derrubar a República, garantiam os líderes republicanos. A imprensa, órgão de comunicação e de poder das elites, passara a insuflar ainda mais a opinião pública contra os sertanejos de Canudos. Destacava-se em virulência o jornal O Jacobino, do Rio de Janeiro. Era urgente e imperioso que se derrotasse o poderoso inimigo. Antônio Conselheiro e seu séquito de fanáticos deveriam ser exterminados. Não apenas os sertanejos foram objeto de intolerâncias, mas também os simpatizantes da extinta monarquia. Em várias cidades do Brasil, esses simpatizantes eram hostilizados e jornais declarados monarquistas foram atacados e incendiados.  Para Canudos, foi enviada a quarta e última expedição, muito maior que as anteriores, e pesadamente armada.

Foi nesta quarta e última expedição que Euclides da Cunha acompanhou como “enviado especial do jornal O Estado (então A Província) de São Paulo e adido ao Estado Maior do ministro da guerra” (CUNHA, 2010, vol.1, p. 10). Daquela campanha, tornou-se testemunha ocular. E dela nasceria a obra Os Sertões.

A iluminação de Euclides da Cunha

O engenheiro e jornalista Euclides da Cunha também era um fanático republicano, e escrevera, ele próprio, artigos inflamados exortando a República a combater o que lhe parecia grave ameaça que vinha do sertão baiano. Nas notícias que reportava a partir da expedição que acompanhou, via e confirmava indícios de presença da coroa inglesa entre os sertanejos. Mas sua visão mudou quando pode ver de perto os famélicos e esfarrapados guerreiros de Canudos. Onde estavam os oficiais britânicos e o armamento inglês?

Euclides da Cunha foi tomado pela confusão reveladora que nos acomete quando primeiro quebramos nossas convicções cegas para abrir-nos a luzes reveladoras. Logo compreendeu que a força dos sertanejos não vinha de armas importadas, mas da convicção de que combatiam uma luta sagrada pelo Deus de sua fé. Eles criam, e disso se orgulhavam, que eram os escolhidos de Deus justamente porque eram pobres, conforme rezavam as Escrituras Sagradas. Acreditavam que seu sacrifício os aproximaria do Cristo que fora sacrificado por eles. Essa devoção lhes conferia força extraordinária para enfrentar um exército muito superior em números e armas. Ao lutar, afirma o autor de Os Sertões, eles gritavam “abaixo o demônio”, enquanto os soldados republicanos gritavam “abaixo a Inglaterra”. Ambos lutavam, nas palavras de Llosa (2020, 48′), contra as fantasias que tinham inventado.

No dia 2 de outubro de 1897 foi tomada a foto de que falamos na abertura deste texto. Dois dias depois, os últimos defensores da comunidade de Antônio Conselheiro morreriam combatendo em suas trincheiras. “Eram quatro apenas: um velho, dous homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente 5 mil soldados” (CUNHA, 2010, vol.II, p.351). Canudos lutou sua guerra santa, sem se render, até a morte de seu último guerreiro.

Impressionado com o que viu, Euclides da Cunha dedicou os três anos seguintes a escrever sua obra Os Sertões, em que afirma sobre a Guerra de Canudos: “Aquela campanha lembra um refluxo para o passado. E foi, na significação integral da palavra, um crime”. Cunha procurava entender o que acontecera em Canudos e, com sua formação positivista, começou debruçando-se sobre entender a terra, depois o homem, e então, o fenômeno Antônio Conselheiro, Canudos e a batalha final.

Décadas depois, impressionado com o que leu, o escritor peruano Vargas Llosa afirmou que Os Sertões é uma “obra extraordinária” e, inspirado no trabalho de Euclides da Cunha, escreveu seu romance “A Guerra do Fim do Mundo”, no qual, com rigoroso respeito aos documentos históricos, preenche lacunas com sua ficção transformando números em vidas, paixões, medos, sofrimentos, esperanças. No romance de Llosa sobre essa guerra fraticida, a personagem Galileu Gall cita Bakunin: “a sociedade prepara os crimes e os criminosos são apenas instrumentos para executá-los” (LLOSA, 1982, p. 91).

As lições de Canudos para este tempo das redes sociais.

Os Sertões termina com esta declaração do autor, que é também uma autocrítica: “Trouxeram depois para o litoral, onde deliravam multidões, aquele crânio [de Antônio Conselheiro]. Que a ciência dissesse a última palavra. Ali estavam, no relevo de circunvoluções expressivas, as linhas essenciais do crime e da loucura… É que ainda não existe um Maudsley para as loucuras e os crimes das nacionalidades…” (CUNHA, 2010, vol. II, pp. 353-354).

Canudos tem muito a nos ensinar. A primeira lição é a de que, quando dois polos defendem ideias divergentes, como em um cabo de guerra em que dois puxam uma corda, a verdade nunca estará nas extremidades, mas em algum ponto do meio da corda. É sábio que, no calor de uma discussão, lembremo-nos disso.

Por fim, uma lição muito atual nestes dias de radicalização: a política, cuja arma é a negociação, é a única opção civilizada contra o enfrentamento pela violência. Valorize-se a Política pois, quando ela falha, ensina a História, é a violência e a barbárie que tomam o seu lugar no seio da sociedade.

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Referências bibliográficas:

Cunha, Euclides da. Os Sertões: volumes I e II. São Paulo: Abril, 2010.

Llosa, Mário Vargas. A Guerra do fim do mundo. 9ª edição. Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora, 1982.

Llosa. Mário Vargas. The War of the End of World (palestra). UChicago Division of Humanities. 2017. (58 min). Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=WbB7q4bxb80. Acesso em: 22 abr. 2020

Written By
Gilberto Vitor

Escritor, pesquisador independente - Literatura, Filosofia, Linguística.

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