Língua viva: erros gramaticais ou pulsações de vida?
Como evoluem as línguas? Por que as palavras prata, branco, fraco e brando são consideradas corretas se, um dia, certas eram plata, blanco, flaco e blando? Por que “casar com
Como evoluem as línguas? Por que as palavras prata, branco, fraco e brando são consideradas corretas se, um dia, certas eram plata, blanco, flaco e blando? Por que “casar com um homem discreto” de Inês Pereira não é o mesmo que casar com um homem discreto de nossos dias? Conhecer a evolução da língua e como alguns verbetes mudaram ajuda-nos a enriquecer nosso vocabulário e melhora o entendimento de como falamos atualmente a nossa “última flor do Lácio, inculta e bela”[i].
Se você puder ler uma revista em quadrinhos dos anos 70, perceberá que muitas palavras corriqueiras de então caíram em desuso. Muitas canções populares também nos mostram isso, como nas frases “estava com o broto no portão” e “é uma brasa, mora?”, cantadas por Roberto Carlos nos anos 60. Os mais jovens terão dificuldades em entender o que significam “broto” e “mora” empregados nesse contexto. Se isso acontece em meio século, imaginem-se as mudanças na língua em três, cinco séculos!
De fato, a língua é viva e mutante. A língua portuguesa, assim como todas as demais, apresenta variações em diversas dimensões, entre elas, geográfica, social e temporal. Essas variações costumam ser fontes de preconceitos e discriminações, mas esses preconceitos, como todos, são frutos da ignorância, e devem-se ao desconhecimento do fenômeno das mutações linguísticas.
Mudanças na escrita – as sempre questionadas convenções ortográficas.
Simplificando e generalizando o fenômeno das mutações linguísticas, podemos classificar duas formas de mudanças – uma na fala, outra na escrita. Estas, na escrita, são mudanças convencionadas e costumam chamar-se reformas ortográficas. Essas mudanças são discricionárias, isto é, ocorrem por decisões de órgãos que têm autoridade para tanto, e são motivadas por razões políticas visando melhorar comunicações documentais. Em 1990 tivemos nosso último Acordo Ortográfico que visava estabelecer uma uniformidade na escrita para os países lusófonos. Nesse acordo, entre outras coisas, extinguiu-se o trema. Com isso, a letra u nos verbos seguir, onde é mudo, e arguir, onde é sonoro, são grafados de forma igual. Enquanto isso, na língua espanhola, seu verbo argüir e o seu pingüino continuam a desfilar vaidosos o seu diéresis, que é como eles chamam esses simpáticos pontinhos sobre a letra u. E ficamos a nos perguntar as vantagens de nos terem roubado nosso charmoso trema.
O povo não tem ingerência direta sobre as reformas ortográficas – ao contrário, são comuns as manifestações de contrariedade. Em carta a Domício da Gama, em 1907, Euclides de Cunha já adiantava sua contrariedade à reforma que seria oficializada em 1911 (CUNHA, 2010, vol. I, p.17) e que, entre outras coisas, faria substituir ph por f, th por t e eliminaria y em favor de i.
Mudanças na língua falada – a revolução mais democrática
Ao contrário das reformas ortográficas, as mudanças da fala percorrem, em geral, o caminho inverso – vêm do povo para os documentos formais. Registros históricos mostram que é possível, sim, ao poder dominante, impor uma fala a um povo. Quando tomou as Filipinas do poder espanhol e impôs àquele arquipélago o seu próprio domínio, a partir de 1898, os Estados Unidos apagaram toda a herança espanhola e impuseram sua cultura, inclusive a língua (Cervera, 2019). Hoje, a língua oficial e dominante nas Filipinas é o inglês. Mas isso foi feito à custa de muito sangue e tortura, como revela o historiador estadunidense Paul Kramer, em seu artigo The Water Cure, publicado em The New Yorker (Kramer, 2008).
No Brasil, o Marquês de Pombal (1699-1782) foi o responsável pela imposição definitiva da língua portuguesa por meio do seu Diretório, convertido em lei em 1758, e que visava a “estabelecer nas suas respectivas povoações o uso da língua portuguesa, não consentindo por modo algum, que os meninos, e meninas, que pertencem as escolas, e todos aqueles índios, que forem capazes de instrução nesta matéria, usem da língua própria das suas nações” (Garcia, 2007, p. 26). Até então, predominava nas vilas e cidades brasileiras um idioma denominado de geral, uma mistura do português com línguas nativas. Não foi sem dor que isso se deu, e, como se vê, o Diretório pombalino deu resultado.
Não obstante esses exemplos em contrário, as mudanças na língua falada costumam ser bem mais democráticas. Nelas, valem os humores do povo junto com os modismos, influências econômicas e culturais externas, movimentos espontâneos internos, evoluções naturais. É o povo quem, aos poucos, abandona o “fazer a corte” em favor de paquerar. Palavras populares, que podem ser tomadas inicialmente como “de mau gosto”, invadem os dicionários oficiais, como ricardão para sinônimo de amante. A língua popular, aos poucos, invade os salões da língua culta.
As transformações da língua envolvem, além das inserções e abandonos de palavras, o fenômeno da metamorfose. Tente ler a carta de Pero Vaz de Caminha. Lá, você verá que “nom leixarey” é o que hoje diríamos “não deixarei”; “afremosear” é agora “formosear”.
Erros gramaticais podem ser pulsações de vida da língua.
Mudanças como essas, que impõem o fenômeno das mutações da língua falada, começam em geral pelo povo que fala “errado”, conceito que merece sua reconsideração – seguindo a corrente dominante dos linguistas, não se trata de “errado”, mas apenas de variações linguísticas.
Quando você escuta alguém menos letrado falar “dia craro” ao invés de “dia claro”, se perguntará o que aconteceu para que, hoje, as palavras prata, branco, fraco e brando sejam consideradas certas, mas que, um dia, corretas eram plata, blanco, flaco e blando, tais como ainda o são em espanhol, por exemplo, que tem a mesma origem latina do Português. Como saber se, em futuro breve, craro e preno não serão também corretos?
Palavras mudam seu significado ou desaparecem, mas deixam rastros.
Na Farsa de Inês Pereira, de Gil Vicente (1465-1536), diz a solteira Inês, ante a pretensão de casar-se: “não, eu me não casarei / senão com homem discreto, / e assi vo-lo prometo, / ou antes o leixarei”. (VICENTE, 1998. 397-400). Nesse trecho, vemos novamente o verbete “leixarei” que virou “deixarei”. E percebamos o “homem discreto”, que na época referia-se a homem com virtudes palacianas, ou seja, alguém educado, fino e com algum poder de decisão. Com o tempo, “discreto” passou a ser empregado apenas para alguém prudente, circunspecto, reservado, presumíveis virtudes de alguém educado e com poderes, de seu sentido original. Porém, o sentido original de “discreto” permanece em “discricionário”, muito empregado nos meios jurídicos, que identifica algo que depende de decisão de alguém com adequada autoridade.
Como se vê, mesmo quando desaparecem, as palavras deixam rastros. Na língua atual, causaria estranheza dizer que “a bolsa está pejada de dinheiro”, mas, ao esvaziar a mesma bolsa, soa natural dizer-se “despejou seu conteúdo sobre a mesa”.
As palavras destro e sestro faziam um par harmônico, até diríamos que nasceram um para o outro, mas por algum motivo o destro trocou seu par por canhoto, um possível caso de infidelidade lexical. Mas sestro deixou seus derivados, entre eles, “sinistro”, que significa, entre outras coisas, canhoto. Sinistro tem o significado daquilo que foge ao normal, ao esperado, como em prejuízos causados a bens segurados.
Conhecendo melhor a sua e as outras línguas.
Aprender sobre a evolução da língua falada e, especialmente, conhecer palavras que caíram em desuso (arcaísmo) permite entender melhor as obras clássicas de nossa literatura e, assim, enriquecer a experiência dessas maravilhosas viagens de descobertas. Mas os ganhos vão bem além disso. Você pode, também, identificar palavras ainda em uso em outras línguas latinas.
O filme Desmundo, dirigido por Alain Fresnot, traz o resultado de um rico trabalho de pesquisa linguística do Português falado no Brasil no século XVI. Sem a ajuda da providencial legenda, você entenderá muito pouco dos diálogos. Fruto de esforço de equipe envolvendo pesquisadores linguistas e consultores de História e Antropologia, o filme procura reproduzir a fala de nossos primeiros colonizadores em seus níveis lexical, fonético-fonológico e sintático, como explica o pesquisador e linguista Helder Ferreira (ANZUATEGUI, 2006, p.24). No filme, a personagem Brites pergunta “u são inhas froles?” que é traduzido para “onde estão minhas flores?”. U significa “onde”, e é perceptível a semelhança com o verbete francês où, que tem o mesmo significado. Teria o inglês where algo de mesma origem em seu código genético?
O filme Desmundo é uma adaptação ao cinema do belo e sensível romance homônimo de Ana Miranda que retrata o drama vivido pelas primeiras órfãs trazidas de Portugal, a pedido do padre jesuíta Manoel da Nóbrega, para que “os homens casem e vivam em serviço de Nosso Senhor, apartados dos pecados, em que agora vivem, mande Vossa Alteza muitas órfãs” (MIRANDA, 1996, p.7).
O filme teve seu roteiro publicado em livro (ANZUAGUETI, 2006) e, enriquecido com seu texto de apresentação, é em si mesmo uma valiosa fonte de pesquisa. Lá você encontrará palavras como abondo (muito – como abundante, abundar e abundância), chus (de plus, muito), creimados (queimados, como em cremação), fremosa (formosa), mondo (limpo, antônimo de imundo).
Amo-te assim, inculta e bela.
Cada povo que ache que o seu idioma é o mais complicado de todos. Talvez tenha razão cada um deles. Mas a complexidade da língua vem justamente da beleza de suas inúmeras possibilidades em exprimir sentimentos e estética. “Última flor do Lácio, inculta e bela, [..] Amo-te assim, desconhecida e obscura“, diz Olavo Bilac em seu poema Língua Portuguesa.
Conhecer nossa língua e como ela evoluiu permite-nos conhecer mais claramente a nossa gente, o que nos permite melhor compreensão do processo de comunicação; não apenas vocabulário mais rico, mas uma maior capacidade de enriquecê-lo mais rapidamente. Permite-nos ampliar as diferentes maneiras de expressar nossas emoções, com mais variados recursos estéticos. E, além de tudo isso, o prazer em melhor navegar pelos aprendizados e visões de vida daqueles que nos legaram as experiências de suas existências em séculos passados.
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Referências bibliográficas:
Anzuategui, Sabina. Desmundo: Roteiro. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006.
Cervera, César. Así exterminó el ejército de Estados Unidos todo rastro de la herencia española en Filipinas. ABC História. Publicado em 19 jun 2019. Disponível em < <"https://www.abc.es/historia/abci-extermino-ejercito-estados-unidos-todo-rastro-herencia-espanola-filipinas-201906180132_noticia.html">https://www.abc.es/historia/abci-extermino-ejercito-estados-unidos-todo-rastro-herencia-espanola-filipinas-201906180132_noticia.html >. Acesso em: 30 mai. 2020.
Cunha, Euclides da. Os Sertões: volumes I e II. São Paulo: Editora Abril, 2010.
Garcia, Elisa Frühauf. O projeto pombalino de imposição da língua portuguesa aos índios e a sua aplicação na América meridional. Publicado em 2007. Disponível em < <"https://www.scielo.br/pdf/tem/v12n23/v12n23a03.pdf">https://www.scielo.br/pdf/tem/v12n23/v12n23a03.pdf >. Acesso em 30 mai. 2020.
Kramer, Paul. The Water Cure. Analysis of American History. The New Yorker. February 25, 2008 issue. Disponível em < <"https://www.newyorker.com/magazine/2008/02/25/the-water-cure">https://www.newyorker.com/magazine/2008/02/25/the-water-cure >. Acesso em 29 mai. 2020.
Miranda, Ana. Desmundo. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
Vicente, Gil. Auto da Barca do Inferno / Farsa de Inês Pereira / Auto da Índia. São Paulo: Editora Ática, 1998.
[i] Primeiro verso do poema Língua Portuguesa, de Olavo Bilac.