O outro vírus: ensaio sobre a cegueira da infodemia.
Tenho Lido

O outro vírus: ensaio sobre a cegueira da infodemia.

Quando a pandemia da COVID-19 atingiu o planeta no início do ano 2020, a infodemia já nos afetava há anos, conforme nos fez ver o escritor português José Saramago. Agravada

  • Publishedmaio 22, 2020

Quando a pandemia da COVID-19 atingiu o planeta no início do ano 2020, a infodemia já nos afetava há anos, conforme nos fez ver o escritor português José Saramago. Agravada pelas fake news, seus efeitos tornaram-se mais dramáticos quando tentamos combater o coronavírus. De que forma podemos nos prevenir dessa cegueira?

Uma das maiores dificuldades no combate à pandemia da COVID-19, que se alastrou pelo planeta a partir do início do ano 2020, foi a desinformação causada – grande paradoxo – pelo excesso de informações. A COVID-19 é a primeira grande epidemia a atingir um mundo globalizado onde alguém pode ser contaminado pela manhã em Paris e, na noite do mesmo dia, contaminar outro ao jantar no Rio de Janeiro. É também a primeira vez em que uma grande epidemia tem como inimigo não a falta, mas o excesso de “especialistas”.

Quando a peste bubônica, ou peste negra, atingiu a Europa em meados do século XIV, a falta de conhecimentos deixou indefesa a população europeia, o que dizimou estimado um terço daquela gente. O italiano Giovanni Boccaccio (1313-1375) escreveu seu famoso Decamerão a propósito da chegada da peste na cidade de Florença, embora o livro seja mais conhecido pela dose erótica de seus contos. Testemunha da catástrofe, Boccaccio diz que, em meio à falta de conhecimentos, “tornara-se enorme a quantidade de curandeiros, assim como de cientistas [..] homens e mulheres que nunca haviam recebido uma lição de medicina” (BOCCACCIO, 1971, p.14).

Hoje o fenômeno se repete, mas agora por excesso de informações, principalmente falsas, ao que se passou a denominar, por anglicismo, de fake news. E é impressionante o poder que tem as tais fake news de “viralizar” e “infectar” pessoas com falsas convicções. Abundam receitas e soluções mágicas nas redes sociais, contribuindo para aumentar as mortes da epidemia, além de falsas informações contrárias às medidas recomendadas pelos especialistas e autoridades sanitárias.

O que Saramago nos alerta em seu ensaio sobre a cegueira?

O romance Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago (1922-2010), traz uma interessante alegoria sobre a cegueira provocada pelo excesso de informações. Nele, alguém contrai a doença da cegueira. A partir daí, pessoas são contaminadas rapidamente, instalando o caos. Nesse caso, o cego não é privado de ver (ver “nada” ou ver “escuro”), mas o que vê é um excesso de branco, como se estivesse mergulhado em leite. Para os cegos de Saramago, “a cegueira não era viver banalmente rodeado de trevas, mas no interior de uma glória luminosa” (SARAMAGO, 1995, p.94). Um médico personagem do romance chega a cogitar em agnosia, que vem a ser uma cegueira psíquica.

Saindo da alegoria de Saramago e voltando a tratar da “glória luminosa” das fake news, sabemos que a nossa percepção de realidade é afetada por diversos fatores sensoriais, culturais, cognitivos e emocionais. Em geral, nós filtramos o que lemos ou ouvimos segundo nossa capacidade de interpretação, mas também segundo nossas disposições afetivas e emotivas. Por exemplo, uma notícia desedificante sobre alguém de quem não gostamos será aceita, em geral, sem necessidade de confirmação; do mesmo modo, tendemos a dar crédito ao que ouvimos de bom sobre pessoas por quem temos apreço.

Por que as convicções nos cegam?

No campo da “cegueira branca”, nada supera o embotamento da convicção. Quando buscamos informações, tendemos a procurar aquelas que confirmam nossas certezas prévias. Ainda que sejamos confrontados com fatos que abalam nossas certezas, se elas sustentam crenças e confortos afetivos ou emocionais, então nossas mentes cancelam ou distorcem o que estão vendo. Presos àquilo em que acreditamos, ficamos cegos. “As convicções são cárceres. Mais inimigas da verdade do que as próprias mentiras”, alerta-nos Nietzsche (2000, p. 150).

O conhecimento das ciências sobre a cognição humana, com base especialmente na psicologia e na antropologia, permite dirigir opiniões públicas e, mais que isso, permite aprisionar pessoas em convicções difíceis de se escapar. Divulgue-se uma afirmação fazendo-a “viralizar” nas redes sociais; faça-se com que as pessoas associem essa afirmação a um valor que lhes seja caro (afetivo, cultural, emocional); alimente-se essas pessoas com doses sucessivas de reforço daquela afirmação (sejam novas afirmações, sejam discretos estímulos visuais). Pronto! Temos aí uma multidão incapaz de enxergar fatos óbvios que se choquem com as convicções que lhe foram inoculadas.

Como estar alerta às fontes de fake news?

Seria injusto generalizar a responsabilidade por disseminação de fake News e incluir aí indiscriminadamente a imprensa, mesmo porque é necessário dar precisão ao termo. Em tempo de internet, basta um domínio, um blog e certo ar de respeitabilidade, e o sujeito pode se declarar parte da “imprensa”. Ainda que seja clara a distinção entre a tradicional e redes sociais, há uma zona comum entre as duas. De qualquer forma, quem tem tradição em fazer jornalismo respeitável tem o compromisso de zelar por sua reputação.

O fenômeno das redes sociais é impressionante. Em junho de 2015, quando recebia seu título de doutor honoris causa em Comunicação e Cultura na Universidade de Turim, o linguista e escritor italiano Umberto Eco expressou sua preocupação em relação a essas redes. Segundo o escritor, elas dão repercussão de importância às palavras de uma “legião de imbecis” que, antes, falavam nos bares depois de uma taça de vinho sem causar prejuízos à coletividade[i]. Os debates nesses ambientes virtuais, salvo exceções, são permeados de opiniões desprovidas de fundamentos, com manifestações de ignorâncias cheias de achismos.

Por outro lado, embora seja leviano acusar a imprensa tradicional de também veicular fake news, ela está longe de isenção no fenômeno de manipulação da opinião pública. A imprensa é feita por empresas cujos acionistas têm prioridades e valores diferentes dos seus profissionais de comunicação. Nesse contexto, Yves Derai, diretor da francesa Tribune Juive reconhece que “infelizmente, a crise econômica que sofremos não favorece o primado da verdade e o respeito pelo equilíbrio entre poder financeiro e o poder intelectual” (Foro Internacional sobre Intolerância, 2000, p. 249).

Antiviral: Questione suas certezas.

Disse-me uma vez um amigo advogado, do alto da sabedoria de seus 78 anos: “você só está pronto para defender uma causa ou ideia se souber também como combatê-la, e vice-versa”. Conhecer o outro lado, conhecer o ponto de vista contrário, ainda que lhe seja desconfortável, essa é a chave para você se libertar do cárcere da convicção.

Gosto da frase de Riobaldo, do romance Grande Sertão: Veredas – “Vivendo se aprende; mas o que se aprende, mais, é só a fazer outras maiores perguntas” (ROSA, 2001, p. 413). A chave da sabedoria não está em saber responder, mas em saber perguntar. E esta é a chave que nos pode libertar das certezas dos tolos, qual seja, o quanto nós conseguimos questionar honestamente nossas convicções, ainda que seja difícil ter certeza do quanto estamos livres de convicções cegas. “Penso que estamos cegos. Cegos que veem. Cegos que, vendo, não veem” (SARAMAGO, 1995, p. 310).

* * *

Referências bibliográficas:

Boccaccio, Giovanni. Decamerão. São Paulo: Abril S/A Cultural e Industrial, 1971.

Foro Internacional sobre Intolerância. A Intolerância. Academia Universal das Culturas; publicado sob direção de Françoise Barret-Ducrocq. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.

Rosa, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

Saramago, José. Ensaio sobre a Cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

Nietzsche, Friedrich. Humano, demasiadamente humano. São Paulo: Editora Schwarcz, 2000.

[i] http://pplware.sapo.pt/informacao/as-redes-sociais-deram-voz-aos-imbecis-afirma-umberto-eco/ (visualizado em 13/05/2020).

Written By
Gilberto Vitor

Escritor, pesquisador independente - Literatura, Filosofia, Linguística.

Leave a Reply

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *