Os hiatos de Akutagawa
Menção honrosa no 37º Concurso Literário Yoshio Takemoto da Associação Cultural e Literária Nikkei Bungaku do Brasil. Este conto foi publicado na revista daquela instituição na edição de novembro/2023.
- Publishedfevereiro 12, 2024
Há mais angústias sob os céus do Japão em épocas de paz do que em tempos de guerras, porque na batalha o guerreiro pensa com suas espadas, mas na trégua são os vazios de sua alma que dominam seus pensamentos. Não confundir angústia com medo, que é próprio da guerra. O medo afasta a angústia, porque o medo tem sua urgência. Por isso, os barbitúricos podem ser libertadores, disso sabe o angustiado ao cutucar a morte que o espreita nos limites entre a dose que cura e a dose que mata. Desafiar o derradeiro risco é libertador. O escritor Ryūnosuke Akutagawa quer escrever essa sua descoberta para o seu psiquiatra.
Akutagawa está sentado no chão e encostado à cama, perna esquerda estendida, a outra flexionada de forma que seu joelho faz apoio ao braço direito que segura uma folha de papel pendente na mão relaxada. Rastejara no chão a procura de um grilo cuja estridência tirava sua concentração. O inseto silenciara, talvez só quisesse mesmo a sua atenção. Akutagawa deixou-se ficar no chão porque o frescor do assoalho confortava-lhe o verão de Tóquio, julho era inclemente. Seus olhos se fixavam na folha de papel, seu campo de visão cheio de pontos brilhantes em forma de discos dentados, girando e movendo-se em círculos, isso lhe acontece de vez em quando. Entre esses discos brilhantes, seu braço lhe parecia muito longo, a folha lá longe quase caindo de seus dedos, nela apenas a saudação inicial da carta que escrevia ao seu amigo e psiquiatra Mokichi Saitō. Seu amigo Saitō era também poeta, e atendia no Oyama, hospital psiquiátrico que lhe prescrevia barbitúricos para sua insônia.
Sem ânimo para levantar-se, Akutagawa elaborava mentalmente o que seria o conteúdo da carta. Seus olhos desviaram-se da folha de papel para a caixa sobre a mesa, em cujo rótulo laranja estava escrito “Veronal 0,8g”. Perdão, rótulo amarelo. Akutagawa olha de novo o rótulo, tinha certeza de que era laranja vivo, quase vermelho. No entanto, ali está, amarelo. Seriam as cores as mesmas para todos os olhos, o verde verde, o azul azul, ou seriam as cores como as verdades dentro do bosque de nossos medos e anseios, cada um de nós com sua própria verdade? O Veronal de rótulo amarelo fita-o desafiante. A dose certa para dormir, a dose chave para a paz última e definitiva.
Saitō é melhor poeta do que psiquiatra, não sei se ele tomaria isso como elogio. Se “Aru Ahō No Isshō” vier a ser publicado, de que forma cada leitor saberá minha verdade? As verdades dentro do bosque, cada leitor já terá minha verdade no instante mesmo em que se proponha a ler minhas palavras. Se, além de publicado, vier a ser traduzido no ocidente, como o será? A vida de um idiota? De um tolo? De um estúpido?
O grilo volta a estridular, mas Akutagawa o ignora. Daqui a pouco, esse desgraçado cantará para ouvidos moucos.
Que poema Saitō escreverá quando souber que eu o fiz falhar? Há uma dose certa de Veronal que me permitiria dormir, e há uma dose necessária para que Saitō me dedique um poema obituário. Viver é escolher, e escolher é nossa prerrogativa. Escolher é atravessar o portão do Rashōmon. Todo crime tem sua ética. Quem sabe, Saitō comporá um poema em minha memória. Nenhuma vida termina de fato desde que um gesto seu ilumine outras. Com meu gesto farei Saitō falhar como psiquiatra, mas lhe darei a oportunidade de compor um obituário magistral em forma de poema. Muitas vidas um poema ilumina ao lhes tocar a sensibilidade.
Certa vez Akutagawa disse a Saitō que os hiatos de sua alma são os hiatos do Japão. Há um preço a pagar quando uma nação salta do feudalismo direto à era industrial sem a aurora do Renascimento, por mais que se apegue aos seus ancestrais. O Japão é uma história de saltos, e esses saltos deixam hiatos na alma, ele disse isso a Saitō que, em resposta, apenas lhe estendeu o Veronal de rótulo laranja. Perdão, amarelo.
Um assunto a inquietar Akutagawa era a juventude japonesa. Ele escreveu sua obra Kappa naquele mesmo ano de 1927. Eu tratei desse assunto com meu amigo Saitō ainda no ano passado: arrancaram nosso camponês para ser devorado nas cidades. Libertaram-no do senhor feudal e o entregaram a outro senhor: o Kappa urbano, ocidental, diferente daquele de nossos ancestrais. No campo, a fome, quando vem, se faz anunciar e chega com suas vênias. Na cidade, ao contrário, ela está à espreita todos os dias, ameaçadora, e assalta sem cerimônias. E há outra fome mais implacável do que a do estômago, porque insaciável: a fome do hiato, da ambição de se entregar ao Kappa. Você percebe, Saitō? Talvez isso venha dos saltos do Japão, e é desses hiatos que se alimenta esse Kappa moderno. Ele tem suas entranhas de ferro cheias de engrenagens como os discos luminosos em minha visão. Já se deu conta, Saitō, de como nossos jovens se entregam em servir ao Kappa? Eles o fazem com tanto ardor que até o confundem com nossas tradições. E o Kappa alimenta os hiatos insaciáveis de nossos jovens em troca de suas almas.
Akutagawa tenta levantar-se, mas a perna esquerda está dormente. Em compensação, os discos dentados brilhantes desapareceram, e o grilo silenciou. Muda de posição na esperança de esmaecer a dormência; é preciso levantar-se para colocar tudo isso no papel. Ele vê o Veronal na caixa de rótulo laranja. Olha o rótulo de novo. Sim, laranja, foi o que eu disse. Preciso escrever essa carta para Saitō, e a entregarei a ele pessoalmente, amanhã, no consultório do Aoyama. A carta conterá essas reflexões todas, porei todas no papel, acho que será um ensaio, quem sabe Saitō se encoraje em dar-lhe cores acadêmicas, embora ele seja melhor poeta do que médico; amanhã eu direi isso a ele, e estou certo de que ficará lisonjeado. Gosto de Saitō.
A dormência da perna sumiu, e Akutagawa já pode levantar-se. Toma assento para escrever a carta, mas não consegue alinhar as ideias tão recentemente paridas. Talvez ajudasse tomar uma dose do Veronal para dormir. Ao acordar, terei uma hora de lucidez, quem sabe um pouco mais. A caixa laranja, perdão, amarela, foi o que eu disse, está agora em sua mão, os discos brilhantes girando em torno dela. O Veronal remedia a insônia, Saitō me o prescreveu, mas serei eu a lhe receitar que não há remédio para a angústia como o desafio do risco derradeiro. Amanhã ele me ouvirá insistir nisso. Saitō poderá revolucionar a psiquiatria e até a psicanálise. Poderá ser mais famoso do que o austríaco chupador de charutos.
Akutagawa escutou o grilo recomeçar seu cri-cri-cri. Foi o último som que ouviu antes de adormecer.
Ele não pôde retomar a carta. Na folha de papel, seu último e definitivo hiato.