Ovelha desgarrada (miniconto)
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Ovelha desgarrada (miniconto)

Narrativa curtinha para você enriquecê-la com sua sensibilidade.

  • Publishedjunho 7, 2022

Expulso da Bahia, o poeta Gregório de Matos voltou doente do exílio. Refugiou-se no Recife, em cujo porto sua fama de Boca do Inferno desembarcara muito antes dele.

O bispo de Olinda o julgava um herege imperdoável. Condenava, mais que tudo, seu soneto ‘A Jesus Cristo Nosso Senhor’: “Debocha da própria misericórdia divina! A mão pesada do Santo Ofício deveria cair sobre versos e autor”.

Mas, na última hora do poeta, convenceram o bispo a ministrar-lhe a extrema-unção:

– Deves te arrepender daquele teu soneto herético.

Um último sopro de vida sorriu no rosto do poeta:

– O perdão é a glória de Deus. – E cerrou os olhos pela derradeira vez.

O bispo permaneceu ainda meia hora conversando com o silêncio do poeta. Por fim, fez do soneto que renegava a sua prece mais piedosa:

“Tendes aí, Senhor, Vossa ovelha desgarrada,
Acolhei-a; e não queirais, Pastor Divino,
Perder na vossa ovelha a vossa glória”.

.

Embora trate de personagens históricos, esta é uma obra de ficção. Não há registro seguro de que Dom Frei Francisco de Lima, então bispo de Olinda por ocasião da morte de Gregório de Matos no Recife, tenha dispensado a extrema unção ao poeta.

O poeta Gregório de Matos (✩1636, Salvador-BA; ✞1696, Recife-PE) era conhecido como “O Boca do Inferno” por seu estilo satírico, especialmente contra autoridades e membros da Igreja. Condenado a degredo em Angola, foi autorizado a retornar ao Brasil, desde que não à sua Bahia. Refugiou-se no Recife, onde caiu doente e faleceu pouco mais de um ano após sua chegada.

Written By
Gilberto Vitor

Escritor, pesquisador independente - Literatura, Filosofia, Linguística.

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