Paixão e amor: saber distinguir para melhor usufruir
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Paixão e amor: saber distinguir para melhor usufruir

Quanto mais se sabe de um assunto, maior é a riqueza vocabular a respeito. Os esquimós têm mais de 400 palavras para a neve. Mas temos escassos verbetes para o

  • Publishedoutubro 26, 2021

Quanto mais se sabe de um assunto, maior é a riqueza vocabular a respeito. Diz-se que os esquimós têm mais de 400 palavras para a neve. Mas temos escassos verbetes para o amor (“amo meus filhos”, “amo meu cachorro”, “amo o teu corpo”). Estudo sobre o tema não falta: além dos acadêmicos, ele predomina nas obras artísticas. E nos inquieta desde antes da puberdade até a nossa missa de sétimo dia. Como isso atrapalha nossas relações amorosas?

Deitar com uma [pessoa] e dormir com ela, eis duas paixões não somente diferentes mas quase contraditórias. O amor não se manifesta pelo desejo de fazer amor […], mas pelo desejo do sono compartilhado” (p.21). Assim pensa Tomas em “A Insustentável Leveza do Ser”, de Milan Kundera. Sabemos do que ele fala, mas a palavra “amor” tem aí diferentes significados.

Em entrevista sobre seu livro “La Felicidad Humana”, o filósofo espanhol Julián Marías fala de “pensamento confundente”, e lamenta o fato de termos tão poucos vocábulos para designar amor: enquanto temos palavras diferentes para variantes de uma mesma jogada de futebol (bicicleta, meia-bicicleta, voleio, puxeta), De fato, em regra, quanto mais se sabe sobre um assunto, mais rico é seu vocabulário, como acontece ao gelo entre os esquimós – leio que até os escoceses têm mais de 400 palavras para a neve, de acordo com suas diferenças. Mas empregamos “amor” para designar indistintamente o que sentimos em relação a pais, a filhos, a cônjuge, ao cãozinho de estimação e àquela pessoa que acabamos de conhecer e que nos acendeu desejos eróticos. Sabemos de amor menos do que de futebol?

Para piorar, nossa cultura tampouco distingue amor de paixão. Segundo a psicoterapeuta Esther Perel, amor tem a ver com segurança, previsibilidade, proteção, enquanto paixão diz respeito a novidade, mistério, riscos. Muito diferentes. Romeu e Julieta mal se conheciam quando viveram seu drama de amor. Mas era paixão o que os encantava. Não houve tempo para que o amor brotasse.

Quando desfrutado, o amor cresce e se fortalece, diz Perel, enquanto a paixão, sendo desfrutada, tende a esmaecer e morrer. Em “O amor nos tempos do cólera”, a paixão de Florentino Ariza por Fermina Daza resiste a “cinquenta e três anos, sete meses e onze dias com suas noites” (segundo ele), mantida essa paixão pela expectativa de ser saciada. É quando, para deleite e glória do apaixonado, ele finalmente escuta sua amada dizer, já então viúva e septuagenária: “se temos que fazer safadeza, vamos a ela, mas que seja como gente grande”. Depois de desfrutada a paixão, os parceiros precisam de muita arte para mantê-la acesa, se não com a força incendiária do início, ao menos com o sagrado poder de provocar queimaduras.

É possivel que resida na pobreza de vocabulário uma das causas de nossas dificuldades com os relacionamentos amorosos.

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Referências bibliográficas:

KUNDERA, Milan. A Insustentável leveza do ser. Tradução de Tereza B. Carvalho da Fonseca. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

MARQUES, Gabriel Garcia. O amor nos tempos do cólera. Tradução de Antônio Callado. 4ª edição. Rio de Janeiro: Editora Record, 1985.

PEREL, Esther. Sexo no cativeiro. Tradução de Adalgisa Campos da Silva. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007.

Entrevista com Julián Marías, por Jean Lauand e Elian Lucci. Editora Madruvá, Madri, 26 de maio de 1999. Disponível em: < http://www.hottopos.com/videtur8/entrevista.htm >. Acesso em: 22 de outubro de 2021.

Written By
Gilberto Vitor

Escritor, pesquisador independente - Literatura, Filosofia, Linguística.

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