O pecado da preguiça: inocente disfarce de uma das mais sérias doenças do século.
Por disfarçar uma patologia psíquica, o “pecado da preguiça” é o mais perigoso dos sete. Imagine a rotina de um monge na Idade Média: rezar, jejuar, rezar… O bom cristão
Por disfarçar uma patologia psíquica, o “pecado da preguiça” é o mais perigoso dos sete. Imagine a rotina de um monge na Idade Média: rezar, jejuar, rezar… O bom cristão deveria abster-se de todo prazer mundano. Não somente isso: deveria ainda fugir de “pecar em pensamentos”. Não surpreende que essa rotina incluísse a autoflagelação para expiar culpas inevitáveis.
Vida assim atormentada torna-se naturalmente melancólica. Quando surgiu o conceito dos pecados capitais, estávamos longe da ciência que veio a ser chamada de Psicologia. Aquela tristeza depressiva era tratada como pecado, chamado de “acídia”, que é dicionarizada como “tristeza profunda”.
Acídia é compatível com melancolia, mas aos poucos cedeu lugar à prosaica “preguiça”, numa perversa contribuição da Igreja à exortação capitalista ao trabalho.
São coisas muito distintas, a preguiça e a melancolia. A primeira pode vir da desmotivação; a segunda pode ser doença. Banalizou-se assim um grave problema de saúde – a definição de Tomás de Aquino para acídia é muito próxima à da Psicanálise para a depressão, patologia que exige ajuda especializada.
A vida social impõe muitas interdições. Algumas servem à boa paz social; outras, apenas a fundamentos morais ancorados na ignorância. Do conflito entre os desejos e as interdições vêm as neuroses – algumas, inofensivas; outras, graves. Culpas e recalques escondidos no inconsciente levam à autoflagelação – hoje, não mais física, mas psicológica, que se manifesta na compulsão ao trabalho, à religião, às drogas, aos “likes” das redes sociais… No livro A Revolução dos Bichos, o personagem Cascudo entrega-se ao trabalho com tal intensidade que ignora os alertas à saúde. Morre de trabalhar. Tinha acídia, não preguiça; doença, não pecado.
Em seu Canoas e Marolas, da coleção Plenos Pecados (Objetiva), João Noll narra a apatia de um homem e os dissabores de seu mundo cinzento. Todos conhecemos casos parecidos.
A cultura da culpa leva à tristeza, que é uma força destruidora poderosa. Tomás de Aquino diz que, entre as paixões da alma, ela é a mais danosa ao corpo. E afirma que o melancólico deve buscar prazeres, não penitências.
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Imagem: Freepic
Referências Bibliográficas:
AQUINAS, Thomas. The Complete Works of Thomas Aquinas (Catholic Publishing). Material compiled from Omaha-NE: Kindle Editions, 2018 (parte 2 do livro 2, questão 35, p.2667).
NOLL, João Gilberto. Canos e Marolas (Preguiça). Rio de Janeiro: Objetiva, 1999.
ORWELL, George. A Revolução dos Bichos. 1ª edição. Tradução de Heitor Aquino Ferreira. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2007.