Racismo Estrutural: Por que ele está enraizado em todos nós?
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Racismo Estrutural: Por que ele está enraizado em todos nós?

O racismo, junto a outras manifestações de preconceitos, está de tal forma enraizado na estrutura social e institucional que ganha tintas de normalidade, e pouco causa indignação. O sociólogo Pierre

  • Publishedjunho 21, 2020

O racismo, junto a outras manifestações de preconceitos, está de tal forma enraizado na estrutura social e institucional que ganha tintas de normalidade, e pouco causa indignação. O sociólogo Pierre Bourdieu e o jurista Silvio Almeida convergem na percepção do uso sistemático de símbolos, crenças, práticas e regras propositalmente estruturados para manter privilégios e exclusões.

Aceitemos ou não, o racismo está arraigado na estrutura social. Mas o conhecimento e a capacidade de questionar conceitos, desconstruir estereótipos e recompor certezas pode nos libertar do obscurantismo da intolerância.

Certa vez, em uma entrevista, o escritor português José Saramago afirmou, a respeito de suas considerações sobre religião em geral e cristianismo em particular, que, embora ateu convicto, “quer queira, quer não, sou culturalmente cristão” (Gnoato, 2009, p.18).

Ninguém nasce teísta ou ateu, assim como ninguém nasce racista. Imerso no mundo social, o indivíduo absorve, não só de seus pais, mas de todos os atores e contexto à sua volta, os valores construídos e arraigados no meio. Ainda que, adulto, desenvolva aprendizados que o façam negar valores enraizados ao longo de sua formação, especialmente na infância, esses valores dificilmente poderão ser apagados. Por isso somos todos culturalmente racistas, machistas e homofóbicos, ainda que ojerizemos e combatamos esses vetores de comportamento social. A boa notícia é que podemos, efetivamente, mudar nossas percepções desses valores e, assim, nossos comportamentos.

A atitude preconceituosa se sustenta em três pilares (Campos et all, 2020): o afetivo, onde moram os preconceitos; o cognitivo, onde se abrigam os estereótipos; e o comportamental, que dá curso a discriminações. Neste trabalho, veremos o papel de cada um deles e descobriremos que há, sim, como reeducar nossos condicionamentos indesejados.

O pilar afetivo: de onde vem o preconceito

O cérebro humano tem sua forma muito particular de funcionamento. Costumamos dizer que agimos com o coração ou com o cérebro para diferenciar atitudes tomadas pela emoção ou pela razão, respectivamente. Tratando de como funciona esse embate entre emoção e razão, o livro Inteligência Emocional (Goleman, 2012) analisa o processo emotivo-cognitivo e mostra como as emoções são mais fortes que a razão em muitas circunstâncias (especialmente quando envolvem o medo), e como certas crenças podem criar raízes profundas, difíceis de serem extirpadas. A estrutura cerebral de autodefesa, desenvolvida ao longo da evolução da espécie humana, faz com que as informações do corte afetivo se sobreponham à razão.

Para simplificar as coisas, tomemos um exemplo bem simples: em cultura local, aprendemos que deixar sandálias emborcadas atrai morte para entes queridos. Crescemos e deixamos de acreditar nisso; mas quantos de nós nos vemos impelidos a desemborcá-las? Assim como o inocente exemplo das sandálias, crescemos ouvindo frases e testemunhando comportamentos que marcam nossas crenças e maneiras de ver o mundo – homem não chora; mulheres não são fortes em matemática. São mensagens e símbolos que formarão nossas representações de mundo, dando forma a mapas mentais – representações simplificadas da realidade percebida. Daqui vem a associação do sexo à dominação e à violência; aqui é talhado o modelo desejado de homem “macho dominador” e de mulher “sensível e tolerante”; aqui é construída a imagem do negro como “raça inferior”.

Essas mensagens e símbolos tão simples e aparentemente inofensivos refletem, na verdade, uma normatização estrutural e velada com objetivo de perpetuar dominações e privilégios.

Racismo estrutural: estabelecendo a dominação pelos símbolos

O sociólogo francês Pierre Bourdieu tratou de mostrar, em sua obra, que aquele processo emotivo-cognitivo é afetado por símbolos para operar e justificar domínios sociais por gênero, grupos e classes. Em sua percepção, “a classe, enquanto modalidade de agrupamento social e fonte de consciência e conduta, emerge e se consolida pela competição sem fim, na qual os agentes se engajam através dos diversos domínios da vida, visando a aquisição, o controle e a disputa por diversas espécies de poder ou de ‘capital’” (Wacquant, 2013, p.89). E o estabelecimento desse domínio se dá, segundo Bourdieu, por meio de símbolos, imagens e crenças incutidas nos cérebros como se fossem naturais o que, na verdade, é criado arbitrariamente pelo grupo dominante. Em seu livro A Dominação Masculina: a condição feminina e a violência simbólica, Bourdieu afirma que “…aquilo que, na história, aparece como eterno não é mais que o produto de um trabalho de eternização que compete a instituições interligadas, tais como a Família, a Igreja, a Escola” (2019. P. 8).

Tratando, por sua vez, da questão racial, o jurista e filósofo Silvio Almeida vê esse mesmo fenômeno empregado para encravar a dominação econômico-racial nas estruturas sociais, como trata em seu livro O que é Racismo Estrutural (2018). Doutor em filosofia e teoria geral do direito, presidente do Instituto Luis Gama e professor da Universidade Mackenzie, Almeida apresenta dados estatísticos e históricos para sustentar como o racismo está enredado na estrutura social, política e econômica da sociedade brasileira. O racismo, assim como o machismo, é um conceito construído e mantido nas crenças, práticas, costumes e normas como fatores de dominação e manutenção de privilégios.

Mas como o racismo se entranhou nas estruturas sociais e institucionais?

Racismo: herança da escravidão e dívida do Estado

O dia 13 de maio é memorado anualmente como a data da chamada Lei Áurea, quando se aboliu a escravidão no Brasil. É de fato uma data a ser celebrada, mas é importante lembrar que ela representa, ao mesmo tempo, uma vitória e uma derrota.

A chamada Lei Áurea resultou de um processo lento que durou mais de 50 anos até aquele 1888. Seu fim se deveu, faça-se justiça, à luta de negros e ao ativismo de abolicionistas. No entanto, e não se pode omitir, foi favorecida pela consolidação da era industrial que se espalhara pelo mundo. A nova ordem econômica, capitalista, fazia da escravidão um sistema obsoleto.

Caio Prado Jr. (1907-1990), em seu livro História Econômica do Brasil, lembra-nos que o escravo equivalia a um investimento inicial de longo prazo com o risco de retorno correspondente à vida e saúde do indivíduo escravizado, enquanto o assalariado não demandava investimento inicial ou risco algum.

É ilustrativo o caso de conhecido grupo industrial do município de Paulista, em Pernambuco, do alvorecer até quase metade do século XX – não se compram mais escravos; basta trazer famílias de agricultores pobres do interior, pretos, pardos ou brancos, sob promessas de vida melhor, e instalá-los na propriedade adjacente à indústria em uma configuração de vila operária (Lopes, 1988, pp 39-91). Com quase nenhum investimento, o industrial pode juntar um excedente de mão de obra. Sem sindicato que lhes defenda os direitos, a submissão dos assalariados e seus familiares aos patrões não muda muito em relação à dos escravos.

A luta abolicionista, ajudada pelas pressões da nova ordem econômica, tornou-se intensa nos anos que precederam aquele 1888. Na verdade, porém, poucos abolicionistas tinham preocupação real com o destino ou condição do negro. Exceções havia, como o engenheiro André Rebouças e o advogado provisionado Luis da Gama, ambos negros livres; e o jurista e político Joaquim Nabuco, branco e filho da tradicional casa grande. Esses eminentes abolicionistas defendiam que a abolição fosse acompanhada por medidas que promovessem a integração dos novos homens livres. André Rebouças, por exemplo, puxava a corrente dos que defendiam que a abolição fosse acompanhada de uma reforma agrária que destinasse terras para os ex-escravos. O senador Manoel Pinto de Souza Dantas, do partido Liberal, apresentou projeto de lei abolicionista em que previa, em um embrião de reforma agrária, o assentamento dos libertos em terras próximas às estradas (Duarte, 2020, p.47). Mas seu projeto foi derrotado pelo partido Conservador, que acabou fazendo prevalecer a lei que seria assinada pela princesa Isabel em 13 de maio.

Nesse sentido, a Lei Áurea representou uma grande derrota que trouxe graves danos até os nossos dias. Com seus dois artigos curtos e diretos, ela extinguiu a escravidão e eximiu os antigos proprietários de quaisquer responsabilidades pelos ex-cativos. “Nenhuma indenização ou compensação para os recém-libertos, estimados em 1,5 milhão de pessoas naquela época, nenhuma política de emprego ou de acesso à terra. Isso dificultou a integração dos ex-escravos” (BBC, 2020).

A marginalização do negro e o “sistema de cotas” para imigrantes europeus

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O Estado foi omisso quanto à integração do negro à nova relação de trabalho, mas foi diligente na ação contrária: além de ter dificultado a aquisição de terras pelos negros com a lei 601 do império (Planalto, 2020), o Estado brasileiro investiu altas somas de dinheiro público para trazer mão de obra branca europeia, destinando a levas de imigrantes áreas cultiváveis e terras que negaram aos negros. Em seu livro A Integração do Negro na Sociedade de Classes (1964), o sociólogo Florestan Fernandes (1920-1995) afirma que as medidas que acompanharam e sucederam à abolição imprimiram àquela lei “o caráter de uma espoliação extrema e cruel” (IPEA, 2011).

Eugenia – a institucionalização do racismo

Danos ainda mais duradouros vieram com as políticas eugenistas. Acreditavam e pregavam os eugenistas que a solução para uma superioridade da população brasileira passava por seu embranquecimento para “purificação da raça”. Por isso, a ênfase à imigração europeia e a marginalização do negro. Os ideais da eugenia chegaram ao Brasil ainda no século XIX, e teve seu auge nas primeiras três décadas do século XX. Só para citar alguns, figuravam entre seus apoiadores nomes como o cientista Carlos Chagas, o ex-presidente da República Arthur Bernardes, os escritores Afrânio Peixoto e Monteiro Lobato, entre outros (Santos, 2012, p. 7).

Não se devem julgar homens pelos valores que não sejam os de seu tempo. Não se trata de julgar Carlos Chagas, Monteiro Lobato e os demais; é inegável, porém, que os equívocos de sua geração sobre suposta “purificação racial” trouxeram grandes prejuízos à sociedade como um todo, e aos negros em particular. A ciência provou que não existe essa coisa de raça, nem de raça inferior.

Racismo estrutural e sistêmico – tão natural que se possa ignorar

Os filósofos Pierre Bourdieu (2019) e Silvio Almeida (2018) convergem nas suas visões quanto ao papel de símbolos e práticas culturalmente reproduzidas na eternização de poder, privilégios e exclusões.  À medida que símbolos, crenças, práticas e normas são progressivamente assimilados pelos membros da sociedade, parecerão aos indivíduos tão naturais que dificilmente conseguem contestá-los.

No Brasil, até o final do século XX, eram escassos os movimentos de grupos de representantes de minorias com voz para se fazer ouvir, fossem homoafetivos, feministas ou negros. Prevalecia, e ainda se escuta, a propaganda da “democracia racial”. Confrontando-se notícias de conflitos raciais no exterior com a aparente convivência pacífica de diferentes etnias entre nós, diz-se que “não há racismo no Brasil”.  Ignora-se, por conveniente, que a marca do racismo estrutural é a substituição da violência física pela violência cultural e institucional. Além disso, também ganha tintas de normalidade institucional a violência física com que pretos e pobres das nossas periferias são tratados pelo aparato repressivo do Estado . Felizmente, crescem indignações e protestos.

Diz o professor doutor José Sérgio Leite Lopes que “o vigor de uma forma de dominação pode ser avaliado por sua interiorização pelo próprio grupo dominado” (Lopes, 1988, p. 32). Por isso, não é de estranhar que mesmo entre negros o preconceito seja aceito como algo natural. Não é fácil reunir forças para combater o legado cultural e tão aparentemente natural do racismo.

Tal é a estrutura social em que estamos mergulhados. Tal é a realidade que temos responsabilidade de mudar.

Como podemos nos reeducar em nossos preconceitos

Retomemos os três pilares da atitude racista, o afetivo, o cognitivo e o comportamental. É no corte cognitivo que são formados os estereótipos, e como esses estão no campo consciente, podemos reformulá-los a partir do conhecimento construído. Aprendendo a questionar as raízes do preconceito e as razões em que se sustenta, podemos redesenhar estereótipos e mudar o fator comportamental.

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Foi principalmente na primeira década do século XXI que os movimentos questionadores aos comportamentos discriminatórios ganharam forças no Brasil. Movimentos negros, feministas e homoafetivos ganharam protagonismo. Pessoas foram, aos poucos, assumindo orgulhosos suas condições anteriormente estigmatizadas. Programas humorísticos foram questionados. Pessoas com empatia reconheceram que piadas preconceituosas machucavam, e que elas podiam renunciar a esse tipo de chiste. Outras resistiram em abrir mão de seu prazer em rir de piadas depreciativas, e bradavam contra o que chamavam “excessos do politicamente correto”.

Quando o preconceito é socialmente condenável, alguns reprimem seu comportamento por temerem a reprovação social; outros buscam combater seus preconceitos afetivos a partir de seu pilar cognitivo, desconstruindo falsos estereótipos e questionando as bases do preconceito. Estes desenvolvem empatia e passam a se comportar com natural civilidade.

Quando algumas poucas vozes preconceituosas começaram a ganhar expressão, aqueles que reprimiam suas intolerâncias se viram representados e sentiram-se autorizados a manifestar seus preconceitos sufocados. É o que parece ter acontecido na segunda década deste nosso século em relação ao racismo, ao machismo e à homofobia. Foi assim que segmentos ultraconservadores e reacionários ganharam força e representação, inclusive no Congresso Nacional.

A emoção (campo afetivo onde mora o medo) é muito forte frente à razão (campo cognitivo onde mora o conhecimento). Mas o pensamento crítico que nos confere a capacidade de questionar conceitos, descontruir estereótipos e recompor certezas pode nos libertar do obscurantismo da intolerância.

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Referências Bibliográficas:

Almeida, Silvio Luiz de. O que é racismo estrutural (coleção Feminismos plurais, coord. Djamila Ribeiro). Belo Horizonte: Letramento, 2018.

BBC – British Broadcasting Corporation. A luta esquecida dos negros pelo fim da escravização no Brasil. Disponível em <https://www.bbc.com/portuguese/resources/idt-sh/lutapelaabolicao>. Acesso em 17 jun. 2020.

Bourdieu, Pierre. A dominação masculina. 16ª edição. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2019.

Campos, Luis Antonio Monteiro; Lopes, Jesiane de S. M.; Epelboim, Solange. Crenças, estereótipos, preconceitos: fatores atuantes na socialização. Disponível em <http://www.abrapso.org.br/siteprincipal/anexos/AnaisXIVENA/conteudo/html/mesa/2992_mesa_resumo.htm>. Acessado em 17 jun. 2020.

Duarte, Eduardo de Assis. Machado de Assis afrodescendente: antologia e crítica. 3.ed. rev.ampl.seleção, notas e ensaios. Rio de Janeiro: Malê, 2020.

Gnoato, Gilberto. Psicologia das Organizações. Curitiba: IESDE Brasil, 2009.

Goleman. Daniel. Inteligência Emocional. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012.

IPEA. O destino dos negros após a abolição. Revista Desafios do Desenvolvimento. Edição 70. 2011. Disponível em <https://www.ipea.gov.br/desafios/index.php?option=com_content&view=article&id=2673:catid=28&Itemid=23>. Acessado em 17 jun. 2020.

Lopes, José Sérgio Leite. A tecelagem dos conflitos de classes na “cidade das chaminés”. Tese de doutoramento em antropologia pela UFRJ. São Paulo: Editora Marco Zero, 1988

Planalto. Presidência da República – Casa Civil – Subchefia para Assuntos Jurídicos. LEI No 601, DE 18 DE SETEMBRO DE 1850. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/LIM/LIM601.htm>. Acesso em 17 jun. 2020.

Santos, Ricardo Augusto dos. Os Intelectuais Eugenistas. Da Abundância de Nomes a Escassez de Investigação. (1917-1937). In: VII Simpósio Nacional Estado e Poder: sociedade civil, 2012, Uberlândia (MG). VI Simpósio Nacional Estado e Poder: Cultura, 2012. Disponível em <https://www.historia.uff.br/estadoepoder/7snep/docs/046.pdf>. Acesso em 19 jun. 2020.

Wacquant, Loïc. Poder simbólico e fabricação de grupos: Como Bourdieu reformula a questão de classes. Novos Estudos, CEBRAP. Publicado em julho de 2013. Paginas 87 a 103. Disponível em <https://www.scielo.br/pdf/nec/n96/a07n96.pdf>. Acessado em 19 jun. 2020

Obras apenas citadas:

A integração do negro na sociedade de classes, de Florestan Fernandes (1964).

História Econômica do Brasil, de Caio Prado Júnior (1970).

Written By
Gilberto Vitor

Escritor, pesquisador independente - Literatura, Filosofia, Linguística.

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