Schopenhauer Apaixonado – a natureza do amor sexual e a do amor romântico
Que forças são essas que movem pessoas apaixonadas a atos impulsivos, fazendo-as perder o bom senso e colocar em risco até mesmo suas vidas? O que acontece com o amor
Que força é essa que move pessoas apaixonadas a atos impulsivos, fazendo-as perder o bom senso e colocar em risco até mesmo suas vidas? E o que acontece com o amor quando a paixão inicial esfria? Para responder com linguagem leve e descomplicada, analisamos o revelador ensaio Metafísica do Amor, de Schopenhauer.
O que tem essa tal Metafísica do Amor de útil a nos ensinar?
Helena, professora aposentada e dona de casa, pessoa comum como nós, vai nos ajudar a entender melhor essa tal Metafísica do Amor. Vamos encontrá-la a divertir-se em contar para sua neta adolescente a história de amor que a uniu a Zeca quando se conheceram em 1973. A história dos futuros avô e avó, com lances engraçados e acidentados, faz a neta sonhar – “você devia escrever um livro, vó”. Eram muito jovens na época, ela com 17 anos e ele com 20. Para Zeca, aquele foi amor à primeira vista. Aprendiz de fotógrafo, conheceu-a nos preparativos de formatura das normalistas de uma tradicional escola de classe média. Nos dias seguintes, ele não conseguia tirá-la de sua memória. Ela somente se apaixonou depois, com as cartas cheias de galanteios que o Romeu retratista lhe escrevia. E enquanto Helena narra sua história, a neta contrasta o brilho nos olhos da avó com uma queixa que ouviu de sua mãe a uma amiga: “o casamento esfria, não é?”.
Todos nós conhecemos histórias de paixão, todos nós já vivemos os sabores e dissabores desse tipo específico de amor. É sentimento que não distingue se sua vítima está na aurora da adolescência ou no crepúsculo da velhice. É tema preferido de quase todos os poetas, romancistas, roteiristas de cinema… Foi tratado em dramas como Romeu e Julieta, do inglês William Shakespeare, e o próprio Shakespeare foi romanceado no filme, Shakespeare Apaixonado. Por fim, o tema da paixão também foi tratado pelo filósofo Schopenhauer (1788-1860), em sua fria e crua Metafísica do Amor.
Aquele sentimento que embaça a razão e sequestra as atenções.
A esse sentimento chamam-no amor, e como há copiosos tipos de amores, vamos especificá-lo por amor carnal, aquele que direciona impulsos a um certo alguém, e cujo objeto de desejo está dirigido especificamente ao corpo da pessoa amada – exaltam-se seus lábios, seus olhos, seu colo, seu sorriso… É sentimento que transforma em objeto de adoração tudo o que esteja associado à pessoa amada: seus sapatos, um laço de fita nos cabelos, um lenço de papel usado e esquecido sobre a mesa do restaurante. O grande poeta Mário Quintana chega a declamar em seu Solau à Moda Antiga:
Senhora, eu vos amo tanto
Que até por vosso marido
Me dá um certo quebranto…
O apaixonado Zeca precisou de algum esforço para conquistar sua Helena. E o casal teve que vencer barreiras para estabelecer a união, como se quadra a toda boa história de amor desde Romeu e Julieta. Quando conheceu Zeca, Helena namorava Luis Eduardo, filho de família amiga da sua, e o rapaz se preparava então para entrar na Faculdade de Direito. O namorado aprovado pela família era a previsibilidade segura; o namorado conquistado era a aventura, a descoberta.
As cartas de Zeca traziam declarações românticas em caligrafia sofrível e incômodos erros gramaticais, mas suas declarações conquistaram o coração da futura professora. Ter sido escolhida pelo coração de Zeca com sentimentos tão bonitos lhe enchia a alma de encantos.
De onde vem essa força imperiosa das paixões.
Mas Schopenhauer, coração gelado, tem palavras para desiludir a sonhadora Helena. O autor de Metafísica do Amor afirma que o impulso da paixão não emana de uma necessidade do indivíduo, mas da espécie, com o fito imediato da reprodução. Não é uma necessidade do indivíduo que ama, mas uma ânsia da prole que o indivíduo deve gerar, ainda que fisiologicamente inviável e ainda que, conscientemente, não pense em gerar filhos. É, portanto, um imperativo da perpetuação da espécie, que Schopenhauer chama de “a Vontade de vida em si mesma”, a vontade de vida do novo indivíduo, aquele que nascerá como fruto dessa paixão. Essa Vontade de vida do novo indivíduo é, ao lado do instinto de sobrevivência, força chave para a permanência da vida humana no planeta.
Aqui cabe uma observação a respeito do conceito de Vontade de vida em si mesma, empregado por Schopenhauer, e os impulsos geneticamente codificados garantidores da perpetuação da espécie que mais tarde vieram a lume. Schopenhauer publicou Metafísica do Amor em 1844, isto é, 15 anos antes de Chales Darwin publicar sua obra A Origem das Espécies, e 27 anos antes da publicação de A Descendência do Homem e Seleção em Relação ao Sexo, outra obra do mesmo Darwin. Portanto, é de supor que Schopenhauer tivesse no máximo uma tese a respeito do que Darwin viria a organizar, depois, em uma teoria estruturada.
Schopenhauer afirma que esse amor carnal é “a meta final de quase todo esforço humano, [..] interrompendo a toda hora as mais sérias ocupações, [..] não se intimidando de se intrometer e atrapalhar, com suas bagatelas, as negociações dos homens de Estado e as investigações dos sábios”. Nas suas palavras, trata-se de uma força capaz de transformar a outrora pessoa honesta em alguém inescrupuloso, de fazer do então leal um traidor. Uma força capaz de fazer os apaixonados colocarem em risco a própria vida, honra e segurança, como os adúlteros Madame Bovary, Anna Karenina e Luísa, a prima do Basílio. Esse desejo do imperativo da espécie vem adornado de sentimentos belos para enganar o indivíduo apaixonado e fazê-lo sentir como se fosse autenticamente seu. Sabemos como é difícil convencer alguém apaixonado, não importam gênero nem idade, dos riscos ou inadequações de certas grandes paixões. “O amor é cego”, é o que se diz.
Cabe altruísmo no egoísmo do amor apaixonado?
Para desgosto de sua família, Helena rompeu o namoro com Luis Eduardo e apresentou seu novo amado. Não importaria o que dissessem seus pais, para ela não havia nada mais belo do que o sentimento que a unia a Zeca. Ambos, ela e ele, estavam embevecidos de sentimentos sublimes, com propensão à renúncia e ao altruísmo pelo bem da pessoa amada. Por ele, ela renunciaria ao conforto econômico de sua família. Por ela, ele faria qualquer sacrifício para dar-lhe o melhor dos mundos. Fazê-la feliz era agora o seu grande objetivo na vida.
Mas o frio e insensível Schopenhauer vem, mais uma vez, desiludir aqueles corações. Na verdade, segundo ele, para a Vontade de vida em si mesma, não basta a reciprocidade do amor. Se puder, a pessoa apaixonada escolherá ter a outra consigo, ainda que tenha de experimentar seu desprezo (“um dia aprenderá a me amar”), do que ter apenas sua amizade enquanto a vê nos braços de outra pessoa. Suicídios e homicídios não raramente seguem situações assim. Por isso, sentencia Schopenhauer, “logo se confirma por não ser essencial a simples correspondência amorosa, mas a posse, isto é, o gozo físico”.
Há, sim, amores altruístas. Mas o amor carnal, o que queima em paixão, esse é egoísta, como mostram muitas histórias trágicas de amor. Mas também não é do indivíduo apaixonado esse egoísmo, segundo Schopenhauer, mas vem da mesma causa imperiosa da espécie. Por isso o suicídio e outros sacrifícios individuais em nome do amor. Grandes paixões podem nascer já na primeira troca de olhares, afirma Schopenhauer, e o futuro indivíduo já se manifesta naquele momento a exigir, em nome de sua existência, o máximo de sacrifício dos potenciais futuros pais.
O que acontece quando a paixão esfria?
Parece que todo esse fenômeno acometeu Zeca e Helena e. no caso deles, as coisas se encaminharam bem, como percebe sua neta. Há muitos casamentos felizes, sabemos, mas o cético Schopenhauer afirma que “os casamentos de amor são contraídos no interesse da espécie, não dos indivíduos. [..] Em consequência, os casamentos contraídos por amor, via de regra, tornam-se infelizes. [..] O contrário sucede nos casamentos de conveniência, contraídos na maioria das vezes por escolha dos pais”.
Há, nessa afirmação do filósofo, um evidente equívoco se considerarmos a experiência contemporânea. Mesmo assim, não nos furtemos a avaliar seus argumentos. Lembremo-nos de que ele escreveu sua Metafísica do Amor na metade do século XIX.
Quando os apaixonados logram estabelecer a união, o amor carnal, o coito, enfim, seu objeto de desejo de prazer, cada enamorado, de acordo com Schopenhauer, “experimenta uma estranha decepção e se espanta que algo desejado com tanto anelo não proporcione mais do que qualquer outra satisfação sexual”. De fato, o tempo costuma revelar aquele desencanto suspirado em “o casamento esfria, não é?”. Nesse sentido, segundo o filósofo, a paixão satisfeita leva à infelicidade, e por isso os casamentos infelizes são mais comuns. Nos casamentos por conveniência, ao contrário, o motivo que uniu o casal costuma ser mais duradouro, e a união poderia se manter feliz por mais tempo. O que diz o filósofo parece fazer algum sentido, mas será necessário atualizarmos seu argumento.
Casamentos de conveniência são mais estáveis?
Schopenhauer, como foi dito, escreveu sua obra na metade do século XIX. Àquela época, os casamentos costumavam ser arranjados pelos pais. Se esses arranjos não respondiam aos interesses da espécie, tampouco respondiam aos motivos dos nubentes, pois soíam se adequar apenas a conveniências econômicas das famílias. Aqui, a experiência de Zeca e Helena pode atualizar o ilustre filósofo ao século XXI: além da paixão que os une inicialmente, os apaixonados podem estabelecer seus projetos comuns, criando conveniências comuns. Aquela paixão arrebatadora que uniu os amantes não será eterna, como se resigna Vinicius de Moraes (“que não seja eterno, posto que é chama, mas que seja infinito enquanto dure”). Mas ao imperativo da espécie se podem combinar propósitos das partes, interesses comuns estimulantes em uma união de conveniência.
Quando se uniram, Zeca precisou voltar a estudar e ter maiores objetivos na vida. Helena, por outro lado, aprendeu a cultivar objetivos raros em uma mulher de sua época. E então, seus objetivos comuns estimularam a parceria, o que criou complementaridade e dependência mútua, fortalecendo empatia e fazendo emergir outro tipo de amor, mais sólido e estável. Agora sim, após culturalmente atualizado, faz sentido o “casamento de conveniência” defendido por Schopenhauer.
– Mas casamento esfria, não é, vó?
– Tem que esfriar, minha filha. Nenhuma saúde aguentaria por anos aquele arrebatamento todo do início. Mas esfriar não significa apagar; a chama pode continuar acesa. – A avó aproximou-se da adolescente, sussurrando com um sorriso: – Não tenha medo do amor, meu bem, que é ele o que dá sentido à vida.
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Referências Bibliográficas:
Schopenhauer, Arthur. Metafísica do amor, metafísica da morte. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
Quintana, Mário. Nova Antologia Poética. São Paulo: Globo, 2009.
Moraes, Vinícius. Antologia Poética. 13ª edição. Rio de Janeiro: José Olympio, 1976.
Outras obras mencionadas:
A Descendência do Homem e Seleção em Relação ao Sexo, de Charles Darwin (1871).
A Origem das Espécias, de Charles Darwin (1859).
Anna Karenina, de Liev Tolstói (1877).
Madame Bovary, de Gustave Flaubert (1856).
O Primo Basílio, de Eça de Queiroz (1878).
Romeu e Julieta, de Shakespeare (1597).
Shakespeare Apaixonado – filme. Direção de John Madden (1988).